Os que devoram tudo e os que assistem

A propósito de histórias sobre lutas de poder no seio de famílias das elites financeiras, João Lourenço recupera As Raposas, um texto de Lillian Hellman, no Teatro Aberto.

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João Perry e Luísa Cruz dr
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Luísa Cruz e Diana Nicolau
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Virgílio Castelo, Marco Delgado e Pedro Caeiro

“Parece que estamos na avenida a ver passar as marchas. Mas não são as marchas, é a nossa vida, o nosso dinheiro, as nossas ambições, tudo aquilo que desejamos para nós e para os nossos filhos e que está a ser levado.”

Quando o encenador João Lourenço fala de As Raposas, texto de Lillian Hellman escrito em 1939, e agora levado à cena no Teatro Aberto, está sistematicamente a falar do país em que hoje vivemos. Quando acrescenta “É horrível e esta gente não pára”, está assumidamente a referir-se tanto aos homens da família Hubbard movidos por uma ganância sôfrega quanto às elites financeiras e aos governantes portugueses.

Não é por acaso que no palco do Teatro se assiste a uma luta fratricida pelo poder e pelo dinheiro. “Lembrei-me desta peça pela actualidade que vi nela, pelo que se passava em Portugal no ano passado acerca de famílias, poder, dinheiro, bancos”, diz Lourenço. “Achámos que era interessante como uma família se pode desagregar e pisarem-se uns aos outros, como vimos à nossa frente. Temos a utopia que o teatro possa ajudar qualquer pessoa a pensar, mas como diz a personagem do João Perry, se calhar aqueles que vêem e estão sentados são tão culpados como os outros que fazem.”

A derradeira provocação desta apresentação de As Raposas é essa: o público é colocado no mesmo lugar a que assiste aos acontecimentos que tomam conta do país, enquanto espectador passivo, obedecendo às regras que mandam não interromper nem interferir com o espectáculo diante de si. “Tem de se fazer alguma coisa porque isto é à descarada. Estas raposas de agora mostram-se bem, não têm problemas nenhuns em morder”, desabafa João Lourenço. The Little Foxes, no original, passa a As Raposas nesta versão. Não há nada de pequeno aqui. É tudo uma enormidade.

Tudo existe

O encenador subscreve, assim, o diagnóstico colocado na boca de uma das personagens por Hellman, dividindo o mundo entre aqueles que devoram tudo e os outros que ficam parados a ver. Escrita na viragem para os anos 40 e situada originalmente numa pequena cidade do Alabama, em 1900, The Little Foxes seria inspirada por disputas familiares de parentes da própria autora, sendo trazido para a contemporaneidade do Teatro Aberto – para lá das naturais ressonâncias do texto na actualidade – através da introdução de telemóveis, emails ou computadores. “Tudo aqui existe”, afirma o encenador. Para essa garantia contou o aconselhamento de Helena Garrido, directora do Jornal de Negócios, que ajudou a confirmar e afinar pormenores como as correspondências dos dólares de então aos euros de hoje, a existência (ainda) de acções ao portador ou o tipo de cofres existente nos bancos.

Pela luta de Regina, personagem aqui interpretada por Luísa Cruz e que tanto seduziu Bette Davis no cinema e Elizabeth Taylor no teatro, passa igualmente uma ideia de “libertação da mulher” cara a Hellman, numa peça em que o encenador encontra ecos de Hedda Gabler ou Casa de Bonecas, de Henrik Ibsen. Regina, prejudicada perante os dois irmãos (Virgílio Castelo e Marco Delgado) na divisão das heranças dada a sua condição feminina, leva então a cabo toda uma manobra de manipulação com vista à reparação e correcção dessa injustiça “de uma maneira um bocadinho brutal”.

Ainda assim, a brutalidade permite-lhe o acesso a um andar superior a que os irmãos e sobrinho – com a sua sanha de enriquecer esmagando os mais pobres, concedendo-lhes empréstimos impagáveis para depois lhes confiscarem as terras – nunca ascendem, ficando sempre a rondar a escadaria que ocupa o centro do palco, sem ousar subir um único degrau. E aí, subtilmente, Hellman parece traçar uma linha: Regina rouba os que a espezinharam, nunca os outros.

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