“Os pardais são pássaros rasteiros e isso pode ser boa metáfora da humanidade”

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Formou-se em Direito, exerceu advocacia, carreira que abandonou a favor da escrita, se bem que seja subliminar ao texto, assim como a uma visão do mundo cristã. Céptica, mas condoída, acaba de editar "O Chão dos Pardais"

Dulce Maria Cardoso nasceu em 1964 na Fonte Longa (Trás-os-Montes). Aos seis meses foi para Angola de onde regressou em 1975, aquando da descolonização na chamada "Ponte Aérea", fenómeno que embebe o seu ser.

Formou-se em Direito, exerceu advocacia, carreira que abandonou a favor da escrita, se bem que seja subliminar ao texto, assim como a uma visão do mundo cristã. Céptica, mas condoída, acaba de editar o terceiro romance, "O Chão dos Pardais", tão admirável como os anteriores "Campo de Sangue" (2002) - Grande Prémio Acontece de Romance - e "Os Meus Sentimentos". Nele se reiteram obsessões, nele se renovam traços estilísticos.

É uma escrita cerebral, que não deixa nada ao acaso, mesmo quando poética. Visual, com humor, rápida, contígua ao enredamento e ao ir e vir fílmico. 

As personagens suscitam mais a compaixão do que a adesão. Em "O Chão dos Pardais" coexistem personagens várias, enlaçadas umas nas outras e é o seu enlaçar que mobiliza e firma a história, ela mesma instável, espiral sem fim. Ao leitor o privilégio de (não) concluir ou de optar por um dos pontos de vista avançado.

Afonso e Alice constituem o primeiro núcleo de personagens. Afonso é rico e intangível. Casado com Alice e amante da mulheres jovens, da muito bela Sofia. Prepara-se o 60º aniversário de Afonso. Alice convida um professor de História - Gustavo -, autor de outras biografias, para escrever a de Afonso e assim eternizar o grande homem. Gustavo acaba por anuir, traz um projecto entre mãos que precisa de ser custeado.

Afonso e Alice tiveram dois filhos - Clara e Manuel. Ela é lésbica e reencontra por acaso como empregada dos pais Elizaveta, mulher que vinha observando e por quem se apaixonara. Manuel é médico acusado de negligência, desenvolve "online" uma relação com Lilly.

Este ano Dulce Maria Cardoso recebeu o Prémio Europeu de Literatura.

Porquê o título "O Chão dos Pardais"?

Queria escrever um romance sobre o poder e andava à procura de um título, de repente surgiu-me esta frase, "o chão dos pardais" que à partida não quer dizer nada. Mas pensando agora sobre isso acho que é a imagem: os pardais são pássaros rasteiros, têm asas e podiam aspirar ao céu, mas andam sempre pelo chão, quando muito pelas árvores, e isso pode ser uma boa metáfora da humanidade.

Temos medo da acção, somos mimados. Este conforto da civilização ocidental, dos que estão alimentados, aquecidos, impede-nos de agir. A Elizaveta, empregada imigrada, cuja fome a fazia agir, tornou-se mais corajosa do que Sofia, cujo conforto era desesperante, mas impede de agir.

A Dulce é uma personagem errante. Viveu seis meses nos EUA, em Las Vegas. O que é que essa vivência trouxe ao livro?

"O Chão dos Pardais" ficou suspenso enquanto estive lá, mas acredito que terá influenciado depois, quando voltei e reescrevi partes. Foi determinante para o romance que estou a escrever, "O Amante Americano".

Voltando à sua natureza errante, foi para Luanda com seis meses.

As circunstâncias históricas é que me obrigaram a ser errante. E, uma vez errante, errante para sempre. O facto de ter crescido num país, Angola, e de aos 11 anos ter sido obrigada a abandoná-lo é terrível. Sendo ainda mais terrível porque o país deixou de existir, um país ao qual é impossível o retorno, ainda que os retornos sejam sempre impossíveis, mas desta vez era mesmo, era outro país. E quando se é criança o mundo é pequeno: família, amigos, escola e as paisagens, não há capacidade intelectual de distanciamento. E de repente estava num país - Portugal - de que não conhecia nada a não ser o que aprendia, mitificado, das salas de aula. O mapa de Portugal continental era maior do que qualquer colónia representada em seu torno. Era a metrópole, e tudo perfeito na metrópole... assim se ia alimentando a ideia de império.

Eu sou uma mestiça, porque mestiça não é só a cor da pele, é um ser que está condenado a viver dividido, numa duplicidade, a duas ou mais culturas. E na verdade a minha infância africana, e a maneira de crescer africana, não me tornou na adolescente europeia que a geografia determinava.

Nunca vinha de férias a Portugal?

Não, a ideia era nunca voltar para Portugal, os meus pais saíram zangados de Portugal.

Mas voltou, para onde?

Para Trás-os-Montes, à aldeia de onde eram oriundos os meus pais e onde nasci. Estava parada no tempo em 1975. Era muito pobre, não havia sequer água canalizada.

Por que é que os seus pais saíram de Trás-os-Montes zangados?

Os meus pais tiveram uma história de amor bonita que foi contrariada por toda a gente... e foi por isso, por um desentendimento familiar. E depois sabiam que numa aldeia tão pequena as filhas não teriam futuro. Apesar de tudo terei tido uma infância mais feliz do que se eles nunca tivessem partido.

Nunca pensou centrar uma personagem na descolonização, no ponto de vista de um "retornado"?

Já, foi por isso que me tornei escritora, aos 11 anos fui a minha primeira personagem. Vinda de Angola, os meus pais voltaram sem nada, e Lisboa também estava em convulsão, e eles quiseram proteger-me, fiquei sozinha. Em casa dos meus avós em Trás-os-Montes.

Portanto não foi só perder o país, os amigos, a escola... foi também perder a família, e a realidade era insuportável. A única maneira que tive de sobreviver foi reinventar-me: eu não era aquela pessoa, era outra que estava ali a viver aquela aventura sabe-se lá porquê, depois tudo acabaria e eu regressava à minha vida. Se não fosse assim, teria passado mal, tinha saudades de tudo, da minha família, da comida, dos cheiros, do espaço... até dos filmes de "cowboys" ao ar livre em Luanda. Não havia televisão em Angola. A única coisa que correspondeu à ideia grandiosa que tinha da metrópole foi a televisão, o ter cinema em casa.

Fez mais tarde, aliás, guiões para cinema...

Que nunca foram produzidos, gosto muito de cinema, para escrever, vejo filmes. Não leio para escrever, leio por prazer. Todos temos mecanismos de criatividade, onde vamos buscar inspiração, para mim são os filmes e a dança.

A presença dos filmes pulsa no corpo do que escreve, mas da dança... dê um exemplo.

Nem sequer sigo companhias, basta passar na TV um bailado. É a pujança física, o movimento, a coordenação. Para mim é profundamente inspirador. Farto-me de escrever páginas e páginas depois de ter visto.

Que passo em "O Chão dos Pardais" nasceu com a dança?

A confissão da Sofia no metro, o fim é quase um fio de bailado.

Voltando atrás, não é estranho não haver romances sobre a experiência do regresso a uma terra conhecida ou desconhecida, mas que não é a terra onde se vivia?

Por que é que nunca escrevi sobre isso, tendo sido isso que me levou a escrever? É preciso um distanciamento, o assunto é demasiado grande para que o torne meu, quero tentar abarcar o mais possível o que aconteceu. E até há pouco tempo eu estava centrada nas filas da Cáritas, da Cruz Vermelha e de todas as instituições de caridade, no hotel onde fui alojada, nas peripécias mais terríveis por que pode passar um ser que não tem casa, não tem dinheiro...

De qualquer maneira, os sobreviventes não falam, querem integrar-se, os filhos dos sobreviventes começam a perguntar. Isso está "desviadamente" presente neste livro. Nele surge a questão judaica. É descrita a visita que Gustavo e a mulher, Margarida, fizeram à casa de Anne Frank. Ele tem o projecto em "stand by" de refazer a história daquela garotinha. Margarida irrita-se, e relembra o quão mais importante foi o sofrimento de um colectivo, não só o daquela. Sente alguma similitude com essa questão?

A questão é: qual a melhor maneira de integrar o horror? O que tenho percebido é que nós humanos somos moralmente irresponsáveis em geral. Ou seja, cumprimos o bem a que estamos obrigados, cumprimos o que está legislado. Não roubar!, não matar! são imperativos de ordem moral que têm apoio legal. Os imperativos de ordem moral que não têm apoio legal têm tendência a ser transgredidos. São aqueles pequenos crimes morais como não dar assistência quando vemos alguém com o carro empanado e que vamos embora porque não temos obrigação. Nesse tipo de gesto pequenino, temos tendência a ser criminosos. Quando estamos a falar de uma realidade de tal horror, o que é que fazemos? Temos tendência a não ser participativos, é daí que o nazismo foi possível: os campos foram possíveis por um grande autismo social à volta. Depois, uma vez o horror passado precisamos de ir lá. Talvez por ter sido vítima do horror - enfim, não nessas proporções tão extremadas -, penso que a acção tem de ser simultânea, ou seja, temos de agir perante o horror, não esperar que o horror termine para depois sermos solidários. Peguei na história da Anne Frank por várias razões. Com aquela cara sorridente ela é a cara de milhões de crianças assassinadas. Porquê? Porque temos a história dela. E isto é o importante para mim. Sempre achei que são as histórias que nos prendem. A ficção é poderosíssima por causa disso.

Este livro está cheio de arquétipos bíblicos. Além da matriz cristã, está bem presente aqui a formação em Direito da autora.

Para já o Direito ajudou-me naquela ideia da separação do Bem e o Mal.

O Bem não é também o que leva Júlio, arma na mão, a não matar Afonso?

Quando falo do cristianismo lá dentro é isto.

É a primeira vez que num livro seu aparece a classe alta, digamos assim.

Exacto.

O espaço e o escalão social posicionam-se em relação ao rio. E nunca é identificado qual rio. Quem lê e conhece Lisboa e arredores tende a identificar Lisboa, e a distribuir as personagens por uma mansão na Lapa, o Fogueteiro ou a Pontinha, sem desprimor, e quem sabe Telheiras, mas é um lugar qualquer.

Exacto, interessa-me mais que seja um lugar do que seja Lisboa, não porque não goste de Lisboa, mas porque não me interessa. Das duas uma: ou seria muito relevante ser Lisboa, e aí seria Lisboa e teria de arranjar uma explicação racional para ser Lisboa, ou... em qualquer cidade há sempre uma margem certa e uma errada, isto é uma metáfora da vida. De qualquer maneira que nos organizemos, organizamo-nos sempre em termos de bom e mau, certo ou errado. E crescemos assim, da maneira a sermos integrados, começa com aquela coisa dos que são e não são boas companhias, há as pessoas bonitas e as pessoas feias, há os bons e maus empregos. E portanto interessava-me isso da margem certa e errada.

O Afonso é o elemento da classe alta, tem poder. O poder está associado o dinheiro.

Sim, porque é um romance sobre o poder. Quem tem mais dinheiro tem mais poder, ele é o bem sedutor, o mais duradouro e o único transmissível. A outra forma é a beleza, a beleza é um poder muito grande.

É o poder da Sofia

A outra forma é a inteligência, o talento. Só que a beleza é o poder mais fraco, porque está condenada pelo tempo. A inteligência e o talento supõem que os outros se apercebam disso, portanto é mais subjectivo. O dinheiro é aquele que todos reconhecem e permite agarrar os outros dois: não nos tornarmos inteligentes e nem novos, mas podemos rodearmo-nos disso e quando estamos rodeados disso é como se participássemos disso.

O livro é povoado de pequenos, mas eficazes, marcadores de poder. Por exemplo: quando Gustavo, convidado para escrever uma biografia de Afonso, entra na mansão, Alice declina-lhe o nome, os apelidos todos, imaginando que o impressiona.

Mas é isso que acontece: por exemplo, Manuel - por ser filho de quem é já terá o julgamento facilitado.

O que leva a quebrar aquela relação virtual com Lilly, habitante do outro lado do mundo, via "chats", relação sem relação.

É outra máscara. Aí há várias questões. Primeiro, toda a gente fala da globalização e de o mundo se ter tornado pequeno e eu qusis saber em termos de sentimentos como é que o mundo se tornou pequeno.

Há uma coisa que percebi: é que havia casais que se tinham conhecido "online" e que eram de sítios muito distantes e isso interessou-me, porque me permitiu repegar nos amores por correspondência de que sempre ouvi falar em Angola. Conheci várias pessoas que se tinham casado por correspondência com pessoas que estavam lá, como soldados.

Ou com as madrinhas de guerra...

Exactamente. Essas histórias de pessoas que se escreveram, escreveram... Eu perguntava em miúda: "E não se assustou quando o viu?" A resposta não me esclareceu, não se lembravam bem.

Eu construi os capítulos dos "chats" como peças de teatro sem indicações de cena. Por isso é que a linguagem é tão trabalhada. O que me interessava era saber como poderíamos viver só através das palavras, como nos podíamos reinventar, e como é que depois se lidava com o encontro, em que medida a presença física alterava o que tinha sido construído por palavras. Para além de achar interessante pensar que a Internet e os "chats" são o substituto do confessionário. É neles que se debatem temas importantes, mais gerais ou filosóficos. Discute-se a questão da negligência, da culpa.

A culpa discute-se em todo o romance.

Exacto (risos) deve-se à minha formação judaico-cristã.

Há uma imagem que se repete desde "Campo de Sangue", a do deserto, retórica e literalmente. Lilly vive contígua ao deserto, fala do deserto, sonha que vê pela janela o filho a arder sem poder fazer nada.

Nós humanos não nos apercebemos de quão brutal é a natureza, mas a verdade é que a natureza se opõe a nós e que somos extremamente vulneráveis. Devemos ser humildes, em vez de agir como se fôssemos os donos. Vivemos numa espécie de irresponsabilidade, somos arrogantes. Daí o meu interesse pelos espaços que não se deixam dominar e o deserto é um deles. Para além de ser metafórico, como é evidente.

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