Os paraísos desapareceram na curva dos rios

Theroux, tal como Dante, percorre os ciclos do Inferno, do Purgatório e do Paraíso e ensaia sempre uma redenção.

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Theroux, tal como Dante, percorre os ciclos do Inferno, do Purgatório e do Paraíso e ensaia sempre uma redenção. NFACTOS / FERNANDO VELUDO

Quando Ellis Hock se desfaz do seu recentemente adquirido telemóvel de última geração, carregado com a infinita base de dados que suporta e define qualquer banal existência contemporânea, atirando-o intempestivamente ao rio, descarta também tudo o que constituiu a sua vida das últimas quatro décadas. É um gesto romanticamente simbólico para um homem à beira de um ataque de nervos, consumido pela idade e pela nostalgia de um tempo em que foi feliz, num remoto lugar em África. 

Hock, um americano ingénuo e sentimental, está a passar por um momento particularmente difícil. A sua história e a da sua família chegaram a um ponto de não retorno: neto de imigrantes italianos com o orgulhoso nome de Falcone – ao tentarem americanizá-lo para Hawk vêm as suas esperanças frustradas pela incompetência do funcionário que o regista como Hock – passa horas de tédio avassalador na alfaiataria outrora próspera do avô, ameaçada por centros comerciais e lojas de fast food. Abandonado pela mulher, que descobre no telemóvel vagas mensagens galantes a senhoras de meia idade, detestado pela filha que lhe exige o dinheiro da herança, Hock refugia-se cada vez mais nas recordações de juventude quando, depois de terminada uma licenciatura em biologia, integrou o Corpo de Paz (tal como o autor) e trabalhou como voluntário na antiga Niassalândia (hoje Malawi) na aldeia de Malabo, onde ajudou a erigir uma escola e um hospital e ganhou o respeito dos habitantes por não ter medo de cobras. 

Hock nunca esqueceu Malabo, esse lugar remoto e perigoso, húmido e infernalmente quente, onde aprendeu a língua local, se apaixonou por Gala e experimentou o prazer supremo da vida simples. Mas Gala não correspondeu aos seus anseios eróticos por estar comprometida, e Ellis, apesar de ter prolongado a sua comissão de dois para quatro anos, acabou por ser chamado de volta aos Estados Unidos, chamado pelo dever de pegar no negócio, depois da morte do pai. Na pequena cidade do Massachusetts onde nasceu, o quotidiano instala-se e os anos passam sem que lhe seja possível recuperar o sentimento de regozijo e a felicidade do tempo africano. 

No momento em que começa este livro, Ellis encontra-se numa encruzilhada e hesita em relação ao que fazer, depois de ter vendido a alfaiataria. Ao tomar conhecimento de uma mulher que tem como animal de estimação uma pitão monstruosa que começou a comportar-se de uma forma estranha, é chamado a dar uma opinião – a cobra ganhou o hábito de dormir encostada à dona – e percebe que o bicho está a tirar as medidas à mulher e se prepara para a devorar. O contacto com o animal, o seu cheiro e comportamento convocam sensações tão fortes que ele decide regressar a África, sem se aperceber que vai a caminho da sua destruição e que tal como a dona do pitão, mais cedo ou mais tarde, terá um destino semelhante. 

Hock parte intempestivamente mas, quarenta anos depois, o Malawi, agora independente, não corresponde ao sonho conservado na sua memória. Em Malabo, nada resta da escola e do hospital, os habitantes vivem de expedientes numa letargia fatal e o “branco” já não é bem-vindo, a não ser que tenha os bolsos forrados a dinheiro. Aqueles que ele tinha admirado pelo sua altivez e simplicidade são agora ladrões, interessados apenas num consumismo brutal; à malária junta-se a Sida e às guerras sucederam-se as acções de banditismo. A pouco e pouco, Ellis, paralisado, refém de uma situação que ele não controla, é tranquilamente despojado de bens, da saúde física e mental, enquanto resvala para uma incapacidade dramática que remete para o protagonista de Evelyn Waugh em Handful of Dust, esse inglês com o sugestivo nome de Tony Last que acaba na selva amazónica, indefeso, nas mãos de um velho que o obriga a ler alto as obras de Dickens. Mas se Last é vítima de outrem, a situação a que chega Hock é, tão só, uma consequência da sua concepção de África e dos seus habitantes, construída em torno de pressupostos errados e deturpados pelo seu próprio idealismo. Enquanto se desenrolam as peripécias que alimentam o seu pesadelo – Festus Manyenga, o soba e os habitantes das redondezas são cada vez mais exigentes, Hock tenta escapar mas acaba por ser encurralado numa situação ainda mais assustadora – é inevitável a comparação com Joseph Conrad e a fatídica viagem de Kurtz pelo rio Congo. Tanto Conrad como Theroux se basearam nas suas próprias experiências, cruzando ficção com dados autobiográficos, mas enquanto que o primeiro escreveu Coração das Trevas como um manifesto anti-imperialista, depois de presenciar com intenso repúdio, a crueldade e a corrupção que imperavam nas colónias, a visão do segundo é ambígua e, se possível, ainda mais desoladora. A existência de Hock reflecte uma série de equívocos, de desvios e falhas de julgamento que sempre o afastaram de uma “terra prometida”, eternamente avistada mas fora do seu alcance. No poderoso e rico continente africano, o ciclo infernal de destruição e perda, os dramas da decadência, da doença, do abandono e da corrupção mantêm-se, apenas com a inversão de posição dos seus protagonistas. Na realidade, Theroux recupera aqui o tema de A Curva do Rio (1979) do seu grande amigo, tornado inimigo (com quem afinal já fez as pazes), V.S. Naipaul, colocando uma antiga premissa filosófica – será o impulso poético sentimental que nos leva ao passado e que obscurece permanentemente os esforços do conhecimento, mantendo-nos, tal como acontece com Hock, agarrados a uma espécie de sonho de um paraíso perdido; ou seremos capazes de enfrentar o futuro, construindo, em cada presente, o conhecimento, abraçando uma maturidade em perpétuo desenvolvimento? (A certa altura, Hock tem a visão de que voltou a Malabo, “para morrer” e retira uma certa voluptuosidade fatalista da sua condição de espoliado, de alguém em rota descendente para o seu fim.)

Resta dizer que, apesar de todas as tropelias e misérias a que expõe o seu “cavaleiro de triste figura” no bojo tenebroso do continente negro, o grande escritor que é Paul Theroux não consegue camuflar o seu amor por África. Mesmo que já não haja heróis, mesmo que o rico e condescendentemente generoso “homem branco” seja agora um espantalho derrotado, mesmo que já não haja escolas ou hospitais para construir, mesmo que, como Gala diz a Hock, “primeiro tiram-te o dinheiro, depois comem-te vivo”, mesmo que a arcádia imaginada se tenha convertido num inferno de violência, de doença e de cupidez, mesmo assim Theroux guia o seu próprio Virgílio e, tal como Dante (citado em epígrafe), percorre os ciclos do Inferno, do Purgatório e do Paraíso e ensaia sempre uma redenção. 

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