Os novos teólogos

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Escrevendo, há algumas semanas, na sua crónica semanal, sobre o livro de Thomas Picketty, O Capital no Século XXI, João Carlos Espada argumentava: “Não nos é explicado por que motivo é a desigualdade um problema, nem por que motivo a igualdade seria preferível à desigualdade”. Quem se interessa por teoria política conhece muito bem a discussão em que a liberdade e a igualdade surgem como termos opostos de uma mesma equação. Mas esta frase – e todo o texto em que ela surge – reduz a uma forma caricata essa velha disputa (já em Platão encontramos argumentos contra a igualdade), exaspera-a, faz-nos perceber como se desliza facilmente de uma teoria para uma moral (que, aliás, tem uma feição imoral, o que é a mesma coisa). Sempre que fala de política, e em geral não fala de outra coisa, João Carlos Espada ilustra na perfeição o moralismo abstracto do sonho dogmático do esquerdismo que desperta intacto na reacção conservadora que só formalmente e à superfície fala em nome de um liberalismo histórico. João Carlos Espada é um exemplo notável de uma categoria de enorme pregnância na nossa vida política e intelectual que merece ser identificada e caracterizada: a dos que, vindo da extrema-esquerda, aderiram com tanto entusiasmo aos princípios e aos fins da democracia liberal e do capitalismo, tornaram-se tão acriticamente defensores de um ordem (política, social, familiar, escolar, moral) que mais não fazem do que defender um pensamento que desconfia de todo o pensamento (um contra-exemplo, para percebemos melhor: Pacheco Pereira não pertence a esta categoria, na medida em que preserva uma distância crítica em relação aos seus conceitos, o que faz com que o seu discurso nunca seja, como o de João Carlos Espada, nem uma fraseologia nem uma ideologia). Parecendo que falam de política, estes apóstatas negam a política e acabam na teologia. São novos teólogos que organizam com os seus novos conceitos exactamente o mesmo que organizavam com os antigos: uma “visão do mundo”. Colocamos a expressão entre aspas para lhe atribuir um significado muito próprio: o de uma Weltanschauung, conceito que não pode ser cabalmente traduzido por “visão do mundo”, já que se refere à ideia de explicação ou concepção total, próprias da ideologia. Os novos teólogos mudaram de ideologia, mas as suas ideias de agora, tal como as de antigamente, relevam ainda da lógica de uma ideia que permite explicar o movimento da história como um processo único e coerente. Aquilo que eles não suportam, porque perturba o modo dogmático de pensar que nunca conseguiram abandonar, é que os conceitos sejam utilizados de maneira crítica, sejam críticos de si mesmos, incorporem a suspeita (um dos seus maiores inimigos é o “relativismo”). Por isso, esta nova teologia detentora de teorias todas-poderosas (como a liberdade que é preciso opor tão fortemente à igualdade que o corolário lógico é o de que a desigualdade é um bem e quanto mais desigual melhor), é, afinal, profundamente inimiga da teoria. Por exemplo, os novos teólogos podem ser contra o Estado e venerar a “sociedade civil”, mas jamais conseguem pensar a política contemporânea como experiência que esvazia de sentido a noção de Estado e todas as categorias políticas tradicionais, e ainda menos conseguem pensar que, afinal, a “sociedade civil” é um produto do Estado e aquilo que ele reivindica como prova de que funciona de maneira eficaz. Estes novos teólogos cumprem uma função confessional que responde às exigências medíocres de uma pequena burguesia intelectual.


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