“Os heróis discretos são a grande reserva moral de um país”

Com 78 anos, Mario Vargas Llosa continua eloquentíssimo acerca da crise na Europa e dos progressos vividos na América Latina. O prémio Nobel da Literatura, em 2010, que passou esta semana por Lisboa, fala da "frivolização" da cultura e da transformação dos cidadãos em autómatos obedientes.

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Mario Vargas Llosa REUTERS/Susana Vera

Vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 2010, “pela sua cartografia das estruturas de poder” e pelas imagens incisivas da resistência, revolta e derrota dos indivíduos”, o peruano Mario Vargas Llosa recebeu esta semana o doutoramento honoris causa pela Universidade Nova de Lisboa. Numa entrevista por telefone, muito balizada pelo (escasso) tempo disponível do escritor que aproveitou para revisitar Lisboa, Varga Llosa reflecte sobre a crise que atravessa a Europa e sobre os progressos registados na América Latina, palco preferencial da maioria das tramas dos seus personagens.

 Alguns, como a família composta por don Rigoberto, o seu filho, Fonchito, e a mulher, Lucrécia, vêm atravessando vários romances, desde o Elogio da Madrasta aos Cadernos de Dom Rigoberto (ambos editados pela D. Quixote). Encontrámo-los outra vez no último romance, O Herói Discreto, editado pela Quetzal em Setembro de 2013. É possível que surjam reinventados nas novas obras do escritor. "Quem sabe, talvez estando vivos possam reaparecer." Não será certamente na próxima obra: uma peça de teatro, que a Quetzal promete trazer para as livrarias portuguesas no início de 2015, e em que Llosa insiste nalgumas das suas "obsessões": a importância da cultura, e da literatura em particular, no desenvolvimento do espírito crítico dos cidadãos e o perigo que a deriva desta para um papel de mero entretenimento representa para a própria democracia.

O seu último romance, O Herói Discreto, foi editado em 2013. Está a trabalhar nalgum novo livro?
Acabo de terminar uma peça de teatro que se chama Os Contos da Peste e que é baseada livremente nos contos de [Giovanni] Boccaccio, o Decameron. Desde a primeira vez que li o Decameron que me pareceu que essa situação inicial, esse grupo de jovens que, quando Florença está invadida pela peste, se refugiam numa vila a contar contos, era uma situação muito teatral. E sempre pensei escrever uma peça de teatro a partir desta situação: há uma peste, uma cidade fechada sobre si mesma, e um grupo de jovens que se isola e que consegue escapar através da fantasia e através da imaginação, contando contos. Essa é a peça que estive a escrever este ano. Estou a fazer as últimas correcções e, se tudo correr dentro dos prazos, estrear-se-á no teatro espanhol, em Madrid, no início do próximo ano.

Essa é uma das ideias fundamentais do seu pensamento, nomeadamente no ensaio A Civilização do Espectáculo, em que defende que o papel da literatura, da cultura, é ajudar as pessoas a libertarem-se das suas circunstâncias adversas.
Sem dúvida nenhuma. A literatura não é apenas uma fonte maravilhosa de prazer. Cumpre, além disso, uma função social e histórica de primeira ordem que é a de desenvolver nos leitores um espírito crítico. Depois de termos lido uma grande obra literária, um grande romance, um grande poema, um ensaio, regressamos ao mundo real convencidos de que a realidade está mal feita, que está muito aquém daquela ficção que somos capazes de inventar através da fantasia e da palavra. Isso faz-nos olhar para a nossa envolvência social, cultural e política com olhos muito críticos. E creio que essa é a razão pela qual a literatura, ao longo de toda a História, foi sempre vista com muita desconfiança e com muito temor pelos governos autoritários, pelas ditaduras, por todos os regimes que, no fundo, tratam de controlar a vida e querem demonstrar aos cidadãos que o mundo está bem feito. É essa a razão da censura. E efectivamente a literatura é um perigo para esse tipo de regimes porque tem sempre uma atitude muito crítica face ao mundo tal como ele é.

Mas que pode hoje a literatura contra a indiferença e o conformismo dos cidadãos, nomeadamente dos jovens?
O problema é que a literatura hoje em dia vive uma crise muito profunda, converteu-se sobretudo em entretenimento, perdeu a sua pugnacidade, a sua beligerância crítica, e busca sobretudo entreter. E o entretimento também é uma espécie de adormecimento, uma maneira de desmobilizar criticamente os cidadãos. Creio que essa crise da cultura, que é muito profunda na minha opinião, pode ter um efeito gravíssimo na vigência da democracia e da liberdade. Pela primeira vez na história, o pesadelo de [George] Orwell, de uma ditadura tecnológica, com um absoluto controlo sobre a vida das pessoas, um mundo de cidadãos convertidos em autómatos, já é possível. Isso acontece por causa da degradação da cultura no nosso tempo.

Considera que esta deriva da cultura para o entretenimento, a sua banalização, foi intencional?
Não, não, foi acontecendo. O desaparecimento do espírito crítico vem com a frivolização de uma cultura que só procura entreter e divertir, e que se converteu muito mais num espectáculo do que o que tradicionalmente era: pensamento, ideias, uma visão crítica da realidade, da vida e de todas as manifestações das relações humanas. Creio que esse problema – um problema mundial, porque dá-se tanto em países desenvolvidos,como em países subdesenvolvidos – é a maior ameaça à democracia. No passado, a democracia tinha a ameaça do comunismo, do marxismo, de doutrinas totalitárias, mas essas doutrinas caíram por si e não são hoje o perigo maior que tem a cultura democrática. A democracia, o inimigo maior tem-no no seu seio, e é o desaparecimento da cultura enquanto questionamento constante da realidade.


O filósofo francês Gilles Lipovetsky, com quem tem debatido publicamente estas questões sobre o papel da cultura nas sociedades actuais, lembra que a alta cultura não impediu barbáries como o nazismo.
Mas foi a cultura que permitiu derrotar o nazismo. Agora não temos uma cultura capaz de derrubar nada, porque a cultura tornou-se uma derrota em si mesma. Creio que foi a cultura que nos permitiu compreender a barbárie que significava o nazismo, a barbárie que significava o comunismo. E penso que a democracia triunfou em grande parte graças às ideias, valores, sonhos, fantasias e objectos artísticos criados por uma cultura que era fundamentalmente crítica, questionadora da realidade. Com a cultura transformada em algo passageiro, fugaz, não sei quem nos defenderia de novo das ameaças.

Crê que há o perigo de ressurgimento dos regimes totalitários nesta velha Europa?
Desgraçadamente há alguns sintomas inquietantes – por exemplo, a grande criação cultural, política, moderna que é a União Europeia vive hoje em dia uma crise muito profunda. Há movimentos antieuropeus que estão a recorrer aos velhos recursos nacionalistas, racistas, e, ainda que sejam minoritários, significam um grande perigo. O retorno aos nacionalismos seria uma grande tragédia para a Europa neste mundo globalizado.

Examinou todos os perigos do poder e da corrupção na América Latina…
Na América Latina há um progresso considerável, há muito menos ditaduras do  que no passado, muito mais governos democráticos e consensos quanto à democracia que antes não existiam. Há casos, como os de Cuba e da Venezuela, que são bem mais trágicos, mas é interessante ver como inclusive os países mais vinculados à Venezuela, que receberam mais petrodólares de [Hugo] Chávez e de [Nicolás] Maduro, fazem grandes negócios com Venezuela, mas não seguem as suas políticas. É o caso do Equador, da Bolívia e inclusivamente de Nicarágua. Países que seguem políticas bem diferentes, porque estão conscientes da catástrofe que vive Venezuela, com a sua altíssima inflação, com a sua violência política tão forte, e, além disso, com a violência criminal que também é alta. Não são modelos para nada e claramente há uma esquerda que entende que não é esse o modelo que pode salvar a América Latina, tirá-la da pobreza. É interessante ver, por exemplo, como o Uruguai, onde há um governo que era de extrema-esquerda, faz uma política contrária, de economia de mercado, de incentivo à iniciativa privada. Creio que é um sintoma muito interessante de como na América Latina estamos a assistir a uma mudança muito profunda de cultura política.

Pelo contrário, na Europa, vive-se num crescendo de indiferença e descrédito pela classe política, associados a um conformismo dos cidadãos. 
Desgraçadamente esse é um dos problemas na Europa. Creio que há que combater isso de forma muito resoluta. A União Europeia é uma grande ideia que trouxe já benefícios muito grandes à Europa. É a primeira vez na sua história que a Europa passa mais de 50 anos em paz, sem as guerras catastróficas, sem as tragédias sociais terríveis do passado. E a Europa necessita de dar um novo vigor à ideia de comunidade europeia, porque disso vai depender o seu futuro.

Como crê que a Europa sairá da crise?
Creio que já começou a sair. Do ponto de vista económico, os sacrifícios foram enormes, mas o pior ficou para trás. Creio que casos interessantes são os de Espanha, de Portugal e da Irlanda, que há alguns anos pareciam à beira do abismo e onde claramente as coisas foram melhorando. Falta muito para recuperar os melhores momentos do passado, mas o pior ficou para trás, incluindo no caso da Grécia, que era o mais grave.

As cifras económicas melhoraram um pouco, e mostram que os diferentes países estão a progredir, mas instalou-se, entre os cidadãos, uma certa incapacidade de acreditar.
Há uma grande desconfiança na classe política e considero que justificada. As estruturas políticas estão muito distanciadas da realidade, desfasadas. A corrupção, por outro lado, contribuiu muitíssimo para o desprestígio da política. Isso fez com que movimentos anti-sistema, extremistas, tanto de direita como de esquerda, tenham crescido muito. Esse perigo, há que enfrentá-lo de forma muito resoluta, com maior transparência, castigando os corruptos, devolvendo à opinião pública a fé nas instituições, que é algo absolutamente fundamental para que uma cultura democrática funcione.

No seu último romance, O Herói Discreto, Felícito Yanaqué, é um pequeno empresário que recusou deixar-se extorquir pelas máfias e fê-lo saber nos jornais…
É um caso interessante, porque representa um tipo de empresário novo, surgido na América Latina entre os sectores mais humildes, e que nasce com uma grande pujança, com muito empenho no desejo de prosperar. Ele representa aquela que me parece que é hoje a classe mais interessante, a mais criativa e a que desperta maior confiança no futuro na América Latina. Outro problema que também aparece nesse romance é o das máfias vinculadas ao narcotráfico. Esse é um problema muito, muito sério na América Latina e em certos países como o Peru e o México. Há-que enfrentá-lo com políticas audazes, começando pela legalização da droga. Creio que é uma coisa fundamental, se se quiser acabar com a criminalidade.

Há experiências em curso nesse sentido no Uruguai.
A do Uruguai é uma experiência muito valiosa e interessante. Creio que é o primeiro caso, que será seguido por outros, de um governo que entende que há que mudar de políticas, que a pura repressão não produz resultados e que a única coisa para que serve é para encarecer o produto, o que justamente estimula o aparecimento de máfias e de toda a criminalidade terrível associada ao narcotráfico. É muito melhor tentar esta política que, por um lado, legaliza as drogas, e, por outro, investe as somas gigantescas que se utilizavam na repressão na informação e na reabilitação. Creio que esse é o princípio que terá, a breve ou longo prazo, de aplicar-se, se queremos realmente erradicar o problema da criminalidade associada ao narcotráfico.

Felícito é uma espécie de rebelde discreto…
É alguém que não cedeu à chantagem, que decidiu enfrentar a delinquência por si mesmo, é a reacção de uma sociedade civil viva. É um exemplo muito importante porque há muitos casos iguais ao dele. Este personagem foi baseado numa história real. Li, num jornal de Lima, que na sociedade de Trujillo um pequeno empresário tinha publicado um aviso num jornal dizendo que não ia pagar à máfia. Foi muito interessante, porque, se a sociedade civil actua deste modo, os governos vão actuar também em consequência. Nunca conheci esse empresário, mas ele deu-me a ideia para um personagem que em tudo o resto é invenção minha.

No seu livro há um final feliz e justiceiro. Ninguém fica sem a sua recompensa ou sem o seu castigo. Há aqui algo de fábula moral?
Digamos que há um princípio moral encarnado num personagem que não se considera um moralista, nem se considera um herói, mas que é uma pessoa decente. Um homem que tem uma decência natural que o leva a bater-se contra os delinquentes e criminosos. Eu acho que em todas as sociedades há esses heróis discretos que são os verdadeiros heróis. Os da vida quotidiana, não os de uma acção espectacular e passageira, mas donos de uma perseverança e de constância na decência. Numa sociedade marcada por um discreto racismo e por uma discreta indiferença perante os delitos morais, creio que esses heróis discretos são a grande reserva moral que tem um país, mais do que os heróis militares, os heróis épicos.

Há personagens seus que, como don Rigoberto mas também Lucrécia e Fonchito, vêm transitando entre livros, aparecendo de novo em O Herói Discreto. Vamos poder vê-los em próximos livros?
Isso nunca sei de antemão. Quem sabe, talvez estando vivos possam reaparecer.

Em O Herói… Fonchito é visitado por alguém que não chegámos a perceber quem é ou o que é.
Eu tampouco sei. E tenho uma grande curiosidade. Espero que algum leitor ou algum crítico me dê uma explicação para Edilberto Torres. Para mim é um personagem misterioso, não sei se existe ou se foi inventando por Fonchito. Mas estou convencido que dentro do romance há elementos que podem permitir uma descoberta da verdadeira identidade de Edilberto Torres; um fantasma, uma invenção, um personagem de carne e osso ou, quem sabe, o diabo.

Fonchito e Lucrécia, com don Rigoberto, são protagonistas, em vários dos seus romances, de episódios de amor e erotismo. Há neles sempre um jogo com tabus e proibições, como quando Fonchito pede a Lucrécia que imite as poses das mulheres pintadas por Egon Schiele.
George Bataille dizia algo que me parece muito certo e que era que, se desaparece a ideia de transgressão e de tabu, desaparece o erotismo. Creio que o erotismo é uma espécie de jogo altamente civilizado no qual um par inventa uma mise-en-scène para enriquecer o jogo do amor. Então, se a transgressão não existe, há que inventá-la para que o erotismo surja e enriqueça o amor físico, desanimalizando-o, acrescentando-lhe um elemento de espiritualidade e de criatividade artística. Creio que essa é a ideia básica do erotismo.

Crê que isso pode ser compreendido pelos jovens de hoje que perante o sexo se fazem adultos muito cedo?
Não por muitos, porque converteram o sexo numa espécie de desporto passageiro e efémero. Creio que o amor é muito mais profundo do que aquilo que muitos jovens hoje em dia fazem com ele, graças à liberdade que existe.

 

 

 

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