Os Charlots

Charlie Chaplin morreu no Natal de 1977 e dias depois o seu caixão foi desenterrado da sepultura. O clown autoriza que o roubem e que o profanem de novo.

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"Allez, il faut que t’arrêtes de faire le clown”... é a primeira réplica de O Preço da Fama. É um desafio moral: dirige-se tanto à personagem, que acaba de sair da prisão, como ao intérprete (Benoît Poelvoorde, actor de vorazes, às vezes violentas, acrobacias para causar o riso: “Vá, vê se acabas com as tuas palhaçadas!”). Mas ouve-a sobretudo O Preço da Fama – como imperativo ético. E assim ouve-a o espectador.

São as vozes da solidariedade e da cumpliciade: maltrapilhos e clowns deste mundo – do outro também... –, juntem-se e tomem conta de tudo! Charlie Chaplin, depois de morto, faz um comeback, inspirando os dois pobres diabos que profanaram o seu túmulo. A história inicial é verdadeira: Charlot morreu no Natal de 1977 e dias depois o seu caixão foi desenterrado do cemitério de Vevey, Suíça, onde vivia com a mulher, Oona O’Neill, e oito filhos. Durante alguns dias, os dois ladrões (no filme, Poelvoorde e Roschdy Zem) foram desastrados negociadores de um resgate. Que nunca chegou. E tudo acabou em bem.

O realizador Xavier Beauvois (Dos Homens e dos Deuses, 2010) conta essa história. Mas o que é decisivo passa-se enquanto a história não é reconstituída, deixando-se antes possuir pelo espírito do clown. Que autoriza que o roubem e que o profanem de novo. É como se O Preço da Fama escutasse a cada plano uma comunicação mediúnica. Beauvois, aliás, passou sobre isso numa entrevista quando assumiu que quis estabelecer uma “comunicação” entre as pás que, no filme, desenterraram o caixão de Charlot e as pás que se vêem numa fotografia em que Charles Spencer Chaplin, nos primeiros anos do século XX, aparecia a cavar as fundações do seu estúdio.

Nessa permeabilidade, digamos assim, nessa forma de se deixar possuir (em vez de reconstituir – isto é, em vez de macaquear Chaplin), está o toque de O Preço da Fama: Charlot regressa para ser cúmplice no roubo do seu próprio cadáver. O compositor Michel Legrand é conivente, retrabalhando a música de Limelight (1952) para incentivar Poelvoorde e Zem – o primeiro sempre a levantar voo, o segundo preso ao chão pela gravidade, mas os dois, afinal, redimindo-se da simplística dualidade; é o par de uma hipótese de melodrama, com criança no meio. O melodrama, Beauvois trata-o com o respeito por uma ética que não parece ser já deste mundo cinematográfico: veja-se como o Natal (não) é “dito”, como “entra” pelo lado de quem está de fora, o lado de quem trabalha. 

Em outros tempos seria a “fábula de Natal”. Chegando fora de tempo aos ecrãs portugueses talvez mais se experimente isso: é coisa a que já não temos direito. Mesmo que Beauvois seja menos capaz, na parte final – quando se aproxima em termos figurativos da mansão de Chaplin (onde filmou, aliás) e de quem o rodeava –, de acompanhar o fluxo sem os maquinismos de reconstituição (os acordes de Legrand também são culpados por aquilo que se sublinha), valeu por ter acreditado em Charlot.

 

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