O velho Werther

Um episódio real da vida de Goethe serviu de motivo a Thomas Mann para humanizar o poeta e mostrar as suas contradições

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A partir de um episódio da juventude de Goethe, Thomas Mann reescreve temas como a moral e as suas relações com a arte e a política, a vida da burguesia alemã, o erotismo, a poesia, a verdade

Em 1772, um jovem jurista de 23 anos, Johann Wolfgang Goethe, que por essa altura também iniciava a sua actividade literária, foi estagiar para a pequena cidade de Wetzlar. Apesar de o ambiente não ser dos mais estimulantes, ele acaba por reencontrar num baile o secretário da nunciatura de Hannover, Kestner, acompanhado da sua noiva, Charlotte Buff, por quem se apaixona de imediato. Cria-se uma sólida amizade entre os três, um ménage à trois, com visitas constantes de Goethe à casa da família Buff. Mas, passado algum tempo, o jovem Goethe acaba por deixar a cidade sem se despedir pessoalmente dos noivos. Dois anos depois, o poeta alemão publica o romance epistolar A Paixão do Jovem Werther, em que o protagonista (seu alter-ego) continua a frequentar a casa do casal Kestner (enquanto prepara o suicídio, com que o romance termina), mas não sem realçar que a sua paixão por Lotte (diminutivo de Charlotte), a protagonista feminina, era correspondida. Sabe-se que a verdadeira Charlotte Kestner, quando já sexagenária, visitou a família em Weimar, em 1816, e foi convidada para almoçar em casa de Goethe (então com 67 anos), “o grande poeta da Alemanha”. Desde que o jovem poeta deixara Wetzlar, nunca mais se tinham visto.

Foi com base neste facto histórico (que mereceu a Goethe apenas duas breves notas escritas) que Thomas Mann escreveu as quase 300 páginas do romance Lotte em Weimar — o único do autor alemão que faltava traduzir para português. Escrito entre 1936 e 1939, este é um romance sobre o velho Goethe, ou, talvez melhor, um romance que, mais do que contrariar a tendência para o endeusamento do poeta, o vem humanizar, mostrar as suas contradições. A visita de Charlotte a Weimar funciona assim como um falso motivo para a escrita do romance, e não como a sua “causa”. “Mas aqui vê-se que os homens — e para mais os poetas — só pensam em si; pois a ele não lhe passa pela cabeça que nós temos de suportar as misérias da curiosidade tanto como ele, e ainda por cima há tudo aquilo que ele nos fez, ao teu bom e saudoso pai e a mim, com aquela sua desastrosa mistura de poesia e verdade…”

Note-se que, por essa altura, o nazismo fazia um enorme aproveitamento do génio do poeta (aproveitamento esse que se iniciara já em 1932 com as comemorações enfáticas do centenário da morte de Goethe), mitificando-o de maneira a que servisse as suas intenções políticas. Na brilhante apresentação do livro feita por Teresa Seruya, recordam-se os três ensaios escritos por Mann para essa efeméride, que apontam para uma “desmonumentalização” feita em sentido contrário ao que se passava nos ilustres círculos académicos simpatizantes do nacional-socialismo. O nazismo oficial, logo em 1932, e em resposta a esses três ensaios, sublinha num jornal a total incapacidade de Thomas Mann para escrever sobre Goethe, considerando-o “um filosemita aparentado com judeus e um fraco, um pacifista”.

Lotte em Weimar

, um romance todo ele tecido e arquitectado em redor da visita de poucos dias daquela que foi a grande paixão do jovem Goethe e que lhe serviu de inspiração, é ao mesmo tempo (como muito bem nota a tradutora na introdução) uma reescrita dos temas que desde sempre foram explorados por Thomas Mann (e curiosamente também por Goethe): a moral e as suas relações com a arte e a política, a vida cosmopolita da endinheirada burguesia alemã, os estados pulsionais eróticos na juventude e na velhice, os mecanismos da criação artística, poesia e verdade, os demónios que vindos do inconsciente parecem assaltar de vez em quando as boas consciências, a decadência física, e o nacionalismo alemão em todas as suas variantes. De algum modo, este romance agora por cá publicado parece continuar um projecto antigo de Thomas Mann, o de tornar “relativa” a grandeza de Goethe e de fazer dele uma “personagem literária viva”, ao tratar a decadência física e psicológica do artista e “a tragédia das suas paixões tardias” (fizera-o 20 anos antes em

A Morte em Veneza

), como escreve Teresa Seruya.

Construído por nove capítulos, cada um representando de alguma forma a visita de uma personagem, Lotte em Weimar, não sendo um dos mais conhecidos livros do autor alemão, é um romance que faz de maneira singular, e talvez mais do que qualquer outro, um retrato e uma reflexão sobre as contradições e os mitos da Alemanha do século XIX.

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