O Último dos Injustos: “Ninguém me pode julgar”

O filme documentário de Claude Lanzmann faz-nos entrar no cerne da perversão nazi: utilizar as vítimas no processo do seu próprio extermínio. Quem pode julgar homens como Murmelstein, que vivem numa situação limite?

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Claude Lanzmann não se limita a assumir a reabilitação de Murmelstein. Quer pôr termo à questão dos “conselhos judaicos” e mostrar que os judeus não “mataram os seus irmãos”
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Claude Lanzmann

Claude Lanzmann chama a atenção para a diferença entre o Shoah, cujo tema é a morte, e O Últimos dos Injustos, que fala da vida e da sobrevivência. O primeiro “é um filme épico e o tom é o de tragédia sem remissão”.

 O segundo segue a vida extraordinária de Benjamin Murmelstein, o único chefe de um conselho judaico (Judenrat) que sobreviveu à guerra — mas acusado de colaboracionismo e ostracizado pela comunidade judaica. 
Lanzmann entrevistou Murmelstein em Roma, em 1975, mas considerou que a entrevista não se podia integrar no Shoah. Agora voltou a ela e transformou-a num novo filme. Através dele entramos no mundo das “contradições selvagens” de um dos mais perversos mecanismos nazis: utilizar as vítimas no processo do seu próprio extermínio. Como julgar esses homens? “A mim ninguém me pode julgar, porque não se pode colocar na minha posição”, explica Murmelstein. 

Eichmann
Nascido em 1905, rabi em Viena e professor de Mitologia, Murmelstein torna-se em 1938 interlocutor de Eichmann na emigração de judeus. Assumindo riscos pessoais, mas servindo-se da necessidade que Eichmann dele tem, consegue fazer emigrar 125 mil judeus. 
Fica refém. Quando a Alemanha encerra as fronteiras e começa a transferência dos judeus para leste, para serem encerrados em guetos, Murmelstein será encarregado de parte deste trabalho. Os nazis praticam o princípio de colocar judeus a controlar judeus, responsabilizando-os pela execução das suas directivas. Ele depressa aprendeu as regras do jogo. São marionetas dos nazis. Mas, conhecendo o inimigo, a marioneta também pode aprender a manipular o manipulador. Conviveu sete anos com Eichmann. “Tinha medo?”— pergunta Lanzmann. “Se mostramos medo, estamos perdidos. Mas, sim, eu tinha medo.” Era preciso prostituir-se, participar na farsa, mas, sobretudo, nunca confiar nos nazis.


Terezin
Diga-se que Murmelstein escolheu o destino. Tinha um passaporte da Cruz Vermelha. Esteve várias vezes no estrangeiro antes da guerra. Recebeu mais tarde dois vistos, para a mulher e o filho. Ofereceu-os a um amigo. Por que ficou? “Alguém tinha de fazer o trabalho. E por desejo de aventura”, respondeu a Lanzmann. 
Em fins de 1943, será a vez de Murmelstein, como os “judeus proeminentes” de Viena, ser deportado para o campo de Theresienstadt — Terezin em checo. 

O campo de Terezin, inaugurado em 1942, é uma obra-prima da perversidade nazi. Foi concebido como uma vitrina para mostrar aos estrangeiros. Seria uma “sociedade solidária, autogerida pelos judeus”, disse o seu primeiro presidente. Velhos judeus ricos foram convencidos a aí se instalaram, isolados da desordem do mundo, trocando as suas casas e fortunas por um apartamento “com vista para o lago”. Ao chegar, descobriam a ignomínia: barracões sobrelotados, doenças, violência, a mentira nua. Não era um campo de extermínio. Mas matava-se ao mínimo pretexto — como, por exemplo, tentar enviar uma carta clandestinamente. E vai tornar-se uma estação de passagem da deportação para o Leste, para os campos de extermínio — mas então não se sabia. 

Murmelstein é nomeado para o conselho judaico. Eichmann ordena-lhe que proceda ao “embelezamento” do campo para receber uma delegação da Cruz Vermelha em Junho de 1944. Murmelstein justifica-se: era vital que o campo fosse visto por estrangeiros, pois só assim se garantiria a sobrevivência, evitando a deportação final. 
Fuzilado o ancião-presidente, sucede-lhe na chefia. Os “anciões” são impostos pelos nazis. Uma recusa pode significar a morte. Mas ele queria assumir a direcção. Defronta-se com fome, epidemias e os diktats alemães. Administra com mão de ferro. Pensa que qualquer resistência directa é impossível. Que resta obedecer. Mas não cegamente. Até aí, as listas de deportados de Terezin eram feitas pelo conselho judaico. Murmelstein recusa-se. Passam os alemães a fazer a lista. Mas o “ancião” recusa também todos os pedidos para salvar alguém — um amigo, um familiar, um amante. “Ponha o seu nome na lista e eu tiro o outro.” Torna-se odiado pela maioria do gueto. Sentimentos? Responde sempre com metáforas: “Um cirurgião que começasse a chorar durante uma operação mataria o doente.”


A reabilitação
Fechado Terezin, Murmelstein não foge (tinha o passaporte). Entrega-se a um tribunal checo. É ilibado. Instala-se em Roma. Figuras judaicas pedem o seu enforcamento. O termo “colaboracionista” é infamante — equivalente a traidor. Oferece-se para depor no julgamento de Eichmann, em 1961. O tribunal israelita não lhe responde. Ele poderia ter dado um testemunho que pouparia muitos equívocos: narrar o modo como o então tenente Eichmann dirigiu a Kristallnacht em Viena (9-10 Novembro 1938). Quando morre, em 1989, a comunidade judaica de Roma proíbe que seja sepultado ao lado da mulher: é enterrado numa berma do cemitério judaico.

 

A entrevista é o depoimento de auto-reabilitação de Murmelstein — um homem superiormente inteligente, culto e de um humor sarcástico. Com o avanço da entrevista ele toma conta da cena. O filme de Lanzmann assume essa reabilitação. E visa mais longe: mostrar, através de Murmelstein, que os judeus “não mataram os seus irmãos”. 
O Último dos Injustos não encerra a questão dos conselhos judaicos e o seu papel na Shoah. Mas muda os termos da discussão.

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