O transformista

Um auto-retrato de Nick Cave por interposta pessoa.

i-video
Trailer 20.000 Dias na Terra

Nick Cave, mestre da canção de amor maldito, do punk romântico, do gospel infernal, está há 20 mil dias na Terra, número que equivalerá, mais coisa menos coisa, aos 57 anos que ele tem hoje. 20.000 Dias na Terra acompanha-o ao longo desse dia tão especial em que o número se perfaz. Só esta ideia já sugere que o filme de Forsyth e Pollard não é o tradicional documentário rock — pela sua estrutura semi-ficcional, pela abundância de momentos cuidadosamente preparados e depois estendidos no tempo (impecável, a cena do almoço com o seu colega Warren Ellis), 20.000 Dias na Terra está a 20 mil milhas daquela estrutura clássica “depoimentos + imagens de arquivo + cenas de concerto”.

Nick Cave comanda, a voz off é dele, escrita e dita com a mesma verve que conhecemos das suas canções. Parece bastante óbvio que ele não está no filme como um simples “objecto” para observação de Forsyth e Pollard. Está no filme como “sujeito”, e é uma espécie de seu “autor” escondido por trás dos nomes dos realizadores, como se 20.000 Dias na Terra fosse um auto-retrato por interpostas pessoas. “Como se fosse” não; é mesmo.

Entre mais ou menos veladas, mas bastante irónicas, menções à sua vida privada (o filme abre no quarto de Cave e da mulher, em planos muito parecidos com a capa do seu último disco, Push the Sky Away, e fecha com Cave e os filhos a comerem pizza em frente à televisão), 20.000 Dias na Terra oferece uma perspectiva autobiográfica tanto quanto uma pequena reflexão sobre a pulsão criativa (e o método em que ela se transforma) do cantor-compositor. O modo como biografia e criação se articulam também fica claro — os fragmentos de vida, inchados, distorcidos e desproporcionados, reflectem-se nas canções. Duas ideias são recorrentes no discurso de Nick Cave: a “transformação”, que tem tanto a ver com essa passagem da vida à narrativa das canções como com o “xamanismo”, com a alteração de personalidade, o passar a ser “outro” com um microfone à frente; e a questão da memória, como cimento da identidade. O maior medo dele, diz, é perder a memória, esquecer-se de quem é e de quem foi. É curioso que, no segmento (a visita ao “arquivo”) mais virado para memórias concretas, Cave acabe por se deter longamente em fotografias aparentemente anódinas (uma sequência fotográfica num concerto ainda no tempo dos Birthday Party; uma imagem dele no seu quarto em Berlim já na época dos Bad Seeds), mas que exploradas e quase dissecadas são uma espécie de portal através do qual se atravessa o tempo e, de forma ínvia e sucinta, se reflecte sobre ele. O romantismo exacerbado de Cave rebenta em dois momentos extraordinários: a recordação do momento em que conheceu a mulher, Susie, a que se segue, entre a voz off e a montagem visual, uma das mais bonitas declarações de amor que já se viram; e, a partir daquela religiosidade telúrica que enforma tantas canções dele, a observação sobre a meteorologia britânica transformada numa visão do mundo como praga bíblica já acontecida ou prestes a acontecer. Para admiradores de Cave, é imperdível; e os outros não perderão nada em dar-lhe uma oportunidade.

Sugerir correcção
Comentar