O toque de Midas

Através do seu toque, Midas transformava tudo em ouro. Pedro Valdez Cardoso, através da sua assinatura, reproduz este gesto.

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Toda uma metáfora do circuito económico do objecto de arte contemporâneo num museu onde só se fala de dinheiro...

Cada dia, o nome dado por Pedro Valdez Cardoso a esta exposição, remete o visitante de imediato para uma das frases do Pai Nosso, a oração universal dos cristãos, que pede “o pão nosso de cada dia nos dai hoje”. É também o único pedido nessa oração que se refere explicitamente a uma necessidade material, e logo uma de que depende a própria existência. O pão, por outro lado, está hoje, como sempre foi o caso, num circuito económico que abarca a sociedade no seu todo: entre o cultivo, a ceifa e o processar do trigo, até à cozedura e venda num qualquer espaço de natureza comerical, quer se trate da velha padaria tradicional ou do hipermercado mais anónimo, a questão da troca comercial está permanentemente presente.

Digamos que entre o “cada dia” da oração original, criada em tempos de início da História, e o “cada dia” das  nossas sociedades contemporâneas, em que a presença do pão talvez não seja já coincidente com a alimentação básica das populações, como  acontecia outrora, a questão do dinheiro esteve sempre presente. De forma mais ou menos explícita, ela perpassa no pagamento de um salário a um trabalhador rural, no preço de venda da farinha, na quantia fixada (às vezes por lei) para o produto final. O pão, item elementar de todos os cabazes de compras reais ou simbólicos de todas as sociedades actuais, pode e deve ser trocado. Mesmo quando é dádiva, oferta, gesto de amor ou amizade, que é no fundo o sentido que ele possui no pedido da oração original.

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No coro alto da antiga Igreja de São Julião, uma igreja com uma história pouco banal que hoje acolhe o Museu do Dinheiro do Banco de Portugal, Valdez Cardoso montou duas peças escultóricas. A primeira, que dá o nome à exposição, destaca-se pela forma, os materiais utilizados e a escala, e reproduz a forma de uma carroça de tracção animal feita de serapilheira sobre a qual se amontoam pães de forma pintados de dourado. Se a ligação ao conceito trabalhado pelo artista parece evidente, ela é constantemente sabotada, como sempre sucede no trabalho de Valdez Cardoso, pelos materiais utilizados. Neste caso, estão ausentes deste tipo de tecido todas as ligações que poderíamos construir com o conceito de riqueza. A serapilheira, com efeito, é um textil comum, pouco prestigiado, de uso mais frequente em sacas para guardar alimentos percíveis do que em ambientes de luxo como o que o uso do ouro poderia levar a crer. Um pouco adiante, um par de havaianas de plástico com o título Em pé, que convoca uma verticalide simbólica, está também recoberto do mesmo tom dourado. Contudo, a técnica usada não foi a da aplicação da tinta esmalte, como anteriormente, mas a da folha de ouro, o que acentua a valorização literal a que o objecto foi submetido. O artista não nos engana de todo ao apresentá-lo dentro de uma vitrine, como se de uma obra preciosa e rara se tratasse.

Estamos, como já dissemos, no Museu do Dinheiro. Antes da sua inauguração, há relativamente pouco tempo, este lugar, que já pertencia há décadas ao Banco de Portugal, funcionou como garagem, e isto apesar de ser originalmente uma igreja. Também aqui se descobriu um troço da muralha de D. Dinis, que é visitável na cave, e por isso é legítimo dizer que, apesar da sua utilização variada através dos tempos, se trata aqui de um lugar que é ele próprio um bem raro, difícil de avaliar e de quantificar por uma quantia explícita. Uma garagem, dizíamos, e é decerto importante ver como Valdez Cardoso se apropria de dois meios que servem a locomoção – as chinelas e a carroça – para literalmente os valorizar através da presença da cor dourada. Sempre com ironia, e sempre através do deslocamento de materiais pouco escultóricos – a serapilheira, costurada em ambiente doméstico, e a borracha das chinelas havaianas – aos quais é atribuído o prestígio de uma obra de arte. Através do seu toque, Midas transformava tudo em ouro. O artista, através da sua assinatura, reproduz este gesto. No fundo, através do que vemos aqui, é toda uma metáfora do próprio circuito económico do objecto de arte contemporâneo que é trazido para um museu onde só se fala de dinheiro. Pensá-lo, adquirir os materiais necessários para o concretizar, construí-lo, expô-lo e, através do dar a conhecer uma autoria que, literalmente, vale ouro, comercializá-lo (segundo uma cotação que nada tem a ver com o seu valor material), é este o circuito a que toda a obra de arte está sujeita. Ela, e todos os bens que a sociedade em que vivemos troca incessantemente.

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