O terror integrado

Na passada sexta-feira, assistimos a uma operação jornalística destinada a ensinar-nos o conceito de “terror integrado” como construção delirante de uma cena terrorista, apresentada como evidência. Havia dúvidas quanto à origem: tratava-se de terrorismo islâmico ou de terrorismo da extrema-direita? As provas faziam hesitar entre as duas hipóteses. Mas lá que tinha havido um atentado terrorista, isso era certo. Respondendo com diligência à sua missão histórica, as televisões convocaram jornalistas, testemunhas, tradutores, comentadores, analistas e estudiosos do fenómeno. Só gente ilustre e de muito saber, capaz de falar durante tanto tempo quanto fosse necessário para se fazer luz e revelar toda a verdade. Eram muitos e muito loquazes, por isso já não me lembro do que disseram nem quem eram. Recordo-me de um, chamado Felipe Pathé Duarte, por causa de um pormenor fútil: ele encadeava o seu longo fraseado repetindo o conector “ou seja”, com o qual passava a explicar o que tinha dito anteriormente (o que, por sua vez, exigia um outro “ou seja”, e assim sucessivamente). Na longa jornada de terror televisivo, eis alguém que involuntariamente nos transportava para outro lugar mais habitável, para duas das quatro tipologias do discurso, segundo Lacan: o discurso do mestre e o discurso do histérico. A esta operação levada a cabo em grande escala chamou o PÚBLICO, no dia seguinte, num editorial piedoso, “Os equívocos de Munique”. Seria mais justo que o editorial se tivesse chamado: “É soberano, neste mundo, quem designa o terrorista”. Mas seria inconveniente citar um jovem filósofo francês que esteve preso durante seis meses por causa do episódio mais tragicómico da luta antiterrorista. Na verdade, ao problema bem real do terrorismo junta-se o problema da designação dos terroristas. Ainda há dias o clarividente e enfático Paulo Rangel, neste mesmo jornal, aplicava-se a decifrar o significado do terror em Nice: um atentado perpetrado a 14 de Julho, logo, dotado do valor simbólico de ataque à “trilogia liberdade, igualdade fraternidade” e à “implantação da laicidade”. Deste ponto de vista, um camião lançado contra uma multidão em festa não é bem um camião usado como instrumento de um obtuso acto nihilista, na medida em que o atentado é investido de um significado simbólico e tem a racionalidade simétrica dos valores transcendentes da liberdade, igualdade e fraternidade. Paulo Rangel - e todos os que falam como ele - nem se apercebe de que está a dotar os terroristas de palavras cheias de valor aurático. Um camião de 90 toneladas em alta velocidade na Promenade des Anglais contra a laicidade e os valores da Revolução Francesa: até parece cómico, mas é uma maneira de associar o “terrorista” a uma sublimidade e de lhe oferecer uma caução . E coloco aspas em “terrorista” não para o desculpar ou compreender, mas porque em vez do indivíduo que age em nome de uma “ideologia alternativa, prenhe de valores de severidade, de contenção, de austeridade e de recato” (cito Paulo Rangel), temos afinal, segundo os vários perfis que os jornais dele fizeram, um indivíduo que até às vésperas de alugar um camião para atropelar os valores e o modo de vida das sociedades ocidentais tinha uma vida sexual “desenfreada” (a palavra é do Le Monde), com mulheres e homens, exibia com concupiscência o corpo musculado, fumava, bebia e comia carne de porco. Em vez da linguagem dos símbolos, é tempo de os difusores do terror integrado, esses semiólogos alucinados, perceberem a linguagem dos índices, para evitar os “equívocos de Munique”.    

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