O tempo reencontrado

Naquele que é, possivelmente, o mais proustiano dos seus livros, Mário Cláudio faz do romance uma forma superior de entender o discurso memorialístico. E atinge uma luminosa síntese entre o registo autobiográfico e o ficcional.

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Este é um livro que nos lembra o mecanismo newtoniano, em que tudo parece encaixar em local apropriado, e propiciar um funcionamento de acordo com uma orientação geométrica Diogo Baptista

Em termos de cronologia narrativa, Astronomia retoma, aproximadamente, o nexo temporal de Tocata para Dois Clarins (1992). Se este se interrompia na fronteira do nascimento de Mário Cláudio (depois de ter recriado romanescamente o encontro dos seus progenitores), Astronomia inicia-se na infância do autor. Ao chamar-lhe romance, Mário Cláudio não visa a provocação dos géneros, mas tenta a explicação da síntese que faz entre eles. O escritor afirmara já, em tempos, que “toda a biografia é um romance”. Narrado na terceira pessoa, Astronomia cria uma artificiosa distância que desvia o autobiografado para a tipologia de uma biografia extrínseca. Esse sistema manter-se-á até ao fim.

Não é a primeira vez que Mário Cláudio intitula um livro tomando por inspiração o âmbito lexical da astrofísica. No entanto, a comunicação com o ciclo constituído por Oríon, Gémeos e Ursamaior parece radicar, sobretudo, numa contiguidade vocabular. De resto, onde os outros títulos do autor elegiam particularidades celestes (mas também humanas), em Astronomia a sua atenção ascende à ciência que os une, observando-os, categorizando-os e estudando o seu ser. Do mesmo modo, Astronomia eleva a biografia e o romance a uma fusão em que nenhuma das modalidades abdica do seu fulgor, que não se dissipa, nem mesmo perante a perspectiva da imensidão inquietante do cosmos. Este é um livro que nos lembra o mecanismo newtoniano, em que tudo parece encaixar em local apropriado, e propiciar um funcionamento de acordo com uma orientação geométrica. E, no entanto, essa cosmologia não será levada até às últimas consequências, uma vez que há fissuras, interrupções e lacunas neste tecido, que é, acima de tudo, uma disposição humana. Seja pelas trajectórias que transcendem essa relojoaria da ciência barroca, seja pela conclusão de que o caos atravessa, ele, sim, a extensão indeterminada do Universo. Já que é humana, nada lhe é alheio, como na fórmula consagrada por Terêncio. Nesse sentido, a idealização – que poderia decorrer da sustentação de Astronomia no terreno fundador da infância, secundado pela plataforma essencial da juventude – não chega exactamente a cruzar as fronteiras desta escrita. Isso é sobretudo patente no último momento do livro, onde a realidade mais concreta, e presente, é escalpelizada com um denodo quase cirúrgico.

Astronomia arquitecta, na sua formação, uma estrutura deliberada e significativa. Cada um dos seus três grandes momentos – Nebulosa, Galáxia e Cosmos – subdivide-se, por sua vez, em outras três partições, embora estas possuam um número sensivelmente variável de capítulos (Mário Cláudio não quis levar, nem levou, longe de mais o seu aprumo composicional). Da matéria interestelar da nebulosa – de que não está alheia a noção de indefinição –, associável à distância da infância, Astronomia avança para a maior nitidez da galáxia, de que se podem tentar descrever limites e incidências. Se, por fim, aporta na vastidão do Cosmos, isso é porque a sequência, de certa forma, o determina, mas também porque a interligação das partes e do todo é uma realidade neste livro. A vizinhança temporal que se imiscui na distância, e esta que se confunde com a proximidade, estão fixadas na epígrafe de Leonardo Da Vinci que inicia Galáxia, núcleo central de Astronomia. De resto, os famosos versos dos Quatro Quartetos de Eliot bem poderiam ter emparceirado com o trecho de Leonardo, já que forneceriam uma partitura adequada a Astronomia“O tempo presente e o tempo passado/ Estão ambos talvez presentes no tempo futuro,/ E o tempo futuro contido no tempo passado.”

Também o objecto humano desta peculiar forma de entender a biografia conhece nas suas feições a interpenetração entre diversos tempos. Em Nebulosa, ele é o “velho”; em Galáxia, o “rapaz”; e em Cosmos, o “menino” – isto é, gerando uma denominação inversamente proporcional à cronologia, salvo na secção central. Se no primeiro momento se atenta aos “ritmos da casa demolida” (p. 41), no último, a atenção volta-se para a “casa da Avó” (p. 345). Possivelmente, porque a proximidade do tempo da narração anulou a necessidade de extremar a expressão e diluiu o dramatismo da derrocada. Em qualquer um dos três passos de Astronomia existe o mesmo cuidado testemunhal, servido por uma “memória que não (…) atraiçoa” (p. 93), reforçado pela presença marcante de reproduções fotográficas. O leque dos elementos declina-se por sobre a gama dos aromas, numa espécie de teoria das correspondências que se insinua em férteis recorrências ao longo de Astronomia – “O álcool, o éter, o azul-de-metileno, o mercurocromo, e a creolina, permanentemente difundem pelos ares os seus odores específicos, quando não acres, adocicados ou cálidos, irritantes ou embriagadores.” (p. 113) A mesma preocupação de exaustividade reaparecerá no descerrar do livro, quando o narrador descreve o objecto da sua atenção, com irónica minúcia, no momento de tratar da sua higiene e do seu vestuário, mas com uma sem-cerimónia tão mais notória quanto a recordação perdeu o véu que separava o presente do passado mais ou menos mitificado, ainda que recordado com tão clara precisão – “começa de facto com o Talco Foliáceo, seguido pelos restantes minerais em crescente ordem de dureza, Selenite e Espato-da Islândia, Fluorite e Apapite, Feldspato e Quartzo-Cristal-de-Rocha, Topázio e Corindo Hialino e Diamante.” (p. 337)

Porquê “astronomia”? Talvez porque o romance tenha a fundamentada pretensão de abarcar a imensidão da existência, por nela caberem os balanceamentos e as imprevisibilidades de todas as suas manifestações. Por isso, ele tem de ter em conta os desvios na matéria, a complexa difusão da luz através do espaço, a incapacidade de propagar o som na ausência de ar. A falibilidade da memória é, na verdade, um aspecto menor, mesmo que ela seja suprida, nas suas brechas, pelos tecidos da imaginação. “Astronomia” é, portanto, aqui uma ciência do caos, ou o estudo de um caos que se volve equilíbrio – e vice-versa. E porque a narração é suficientemente impessoal e implacável (especialmente na terceira parte) para ter a precisão de uma proposta científica em que o cientista é também objecto de estudo.

O núcleo inicial de Astronomia concentra-se na primeira infância, mas patenteia já o notável apuro dos sentidos que é um dos instrumentos essenciais na construção deste livro. Quer atente aos sons, às imagens, ou aos paladares – e, dentro destes, as repulsas, como os picados que o tempo de guerra prescrevia –, Nebulosa traduz a minudência acumulativa e quase entorpecedora que leva o narrador a destacar o “garfinho” e a “pazinha” (p. 63) com que se comiam gelados e se escalonava o seu valor. A “fechadura” (p. 71) é um dos signos do interdito e cifra do mistério que turba aquele tempo. Não lhe está distante a descoberta da sexualidade: “A mão do velho paira sobre um corpo adormecido, não o de Rosa, mas o dele mesmo, pousa no ventre, e desce devagarinho até ao mais atraente dos lugares.” (p. 77) A estranha pastoral que se segue, mesclando florações vegetais e carnais, num hibridismo cheio de seiva, é um dos pontos que iniciam a aventura do eu que aqui está tão plenamente em causa.

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Assim como não escamoteara, na infância, a crueldade do biografado, ao escarnecer, insultuosamente, do infeliz que teve um descuido intestinal à vista de todos, a entrada na idade adulta é acompanhada com igual desassombro. A iniciação sexual, por exemplo, é descrita com sóbria elegância, sem paramentos nem pompas, sem requebros nem esconde-esconde – “Festejam-no rapariguinhas rodopiantes nas suas farfalhudas saias de organza (…). E vive com elas teóricos romances, a acrescer às aventuras fugazes, e bem mais intensas, empreendidas com algum condiscípulo, ora na casa dos respectivos pais, ausentes em férias, ora no balneário da piscina” (p. 206). Também no seu tirocínio literário se firma, com clareza, a recusa de uma literatura de “pendor intervencionista, ou propagandeante” (p. 209). Dobradas essas etapas iniciais, o biografado notará a transição da “Olivetti” dos plumitivos de outro tempo para a “pen” (p. 303) dos de agora. De resto, estas memórias estão povoadas de discretos mas reais sinais identificativos. O narrador nem se esforça por ocultá-los, nem se apressa a berrá-los à curiosidade de que escarnece na última respiração de Astronomia. Eles são suficientemente claros para que os interessados percebam neles o poeta mais velho que apadrinhou as primícias do autor, uma soberana embriagada de poder, os zoilos, outros peões, torres e bispos deste xadrez não tão cifrado que não permita uma leitura atenta. A quem possa interessar, portanto.

Neste trajecto biográfico, o autor descreve, com razoabilidade semelhante, “o noivado oficial, e a perspectiva do casamento que lhe prescrevem as leis da tribo” (p. 237). Livre, portanto, da autocensura bem-pensante, o autor está longe da indulgência. Nem os seus pecadilhos, que outros talvez camuflassem, conhecem isenção. É o caso do “funesto exercício narcísico a que não consegue subtrair-se” (p. 309), com que quase se fecha Galáxia, e que se torna especialmente pungente perante o incomplacente quadro de Cosmos, em que o autor se retrata, como no famoso dito de Oliver Cromwell, “com verrugas e tudo”. A sequência imediatamente anterior já lhe dera o mote, ao descrever a “férrea autodisciplina” (p. 293) de quem padece (ou beneficia) de “grafomania” (p. 294). Por fim, descrever-se-á como “amanuense cumpridor” (p. 347). É nessa disposição abdicadora do fausto e da (falsa) seriedade que desce, com inegável humor negro, à latrina, chamando à colação o imperador Cláudio, mas não esquecendo, com ironia, “qualquer um dos seus contemporâneos” (p. 323).

Nunca deixaria de ser proustiana esta narrativa biográfica de quem se torna escritor, ultrapassando corredores domésticos e voltando a eles, tocando o rumorejar do mundo, ensaiando a sua leitura dele. O rio deste romance também fez do universo da casa, das infinitas ressonâncias e cambiantes desse contexto, a pauta em que se inscreve a melodia posta a tocar pela escrita. Quase a fechar Astronomia confessa-se mesmo a “superlativização de Marcel Proust” (p. 415).

Mário Cláudio situa-se nos antípodas de certa vocação para o registo seco, que encontra na depauperação vocabular e construtiva a sua obstinação. Um romance como o que Mário Cláudio escreveu é um acto de rebeldia. Uma contra-ofensiva contra as investidas de um ritmo acelerado e desbastador do que possa não comportar certa ideia de eficácia comunicacional e estritamente directa. Direcções que fazem, não raras vezes, da ficção o mero lugar dos acontecimentos intercalados com a ténue voz narradora e autoral. A proposta do autor de A Quinta das Virtudes vai radicalmente em sentido distinto. Um passo meditado e paulatino, a exploração meditabunda e gozosa do léxico, o torno sumamente trabalhado em que a palavra e a sintaxe são remiradas e rodeadas de cuidados insuspeitos. O que produz resultados, enfim, que contrastam firmemente com alguma da neutralidade jornalística que contamina tanta da prosa literária de agora.

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