Shakespeare encontra Donald Trump num campo de refugiados

Até sábado, no São Luiz, Trocava a minha fama por uma caneca de cerveja cruza os dilemas sociais e políticos do momento com alguns dos textos mais canónicos da história do teatro.

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Todos os dias nos chegam imagens dramáticas e poderosas de acontecimentos que estão a transformar radicalmente o mundo. A guerra na Síria, a crise dos refugiados, a candidatura de Donald Trump à Casa Branca, os sucessivos atentados são alguns dos temas que marcam o imediato. O que era distante tornou-se próximo e automatizou-se o hábito de mostrar solidariedade através de um ecrã, seja por meio de gostos, partilhas ou das cores das bandeiras dos países em causa. São questões como estas que a peça Trocava a minha fama por uma caneca de cerveja, uma das estreias do festival Glorioso Verão, quer discutir. O espectáculo, criação e interpretação de Teresa Sobral, Rui Neto e Miguel Sobral Curado, pode ser visto até 23 de Julho, no Jardim de Inverno do Teatro São Luiz.

O público é, desde logo, convidado a entrar numa tenda instalada pelo exército na sala e a escolher um lugar entre os bancos de madeira, sobre os quais repousam braçadeiras com os nomes de famosas personagens de William Shakespeare: Hamlet, Otelo, Romeu e Julieta. Ao centro, há uma mesa com refeições embaladas para que o público se sirva. “Quisemos recriar um ambiente semelhante ao das refeições nas tendas dos campos de refugiados”, explica Teresa Sobral.

 Ao longo de 45 minutos, a ideia é desconstruir os problemas da sociedade contemporânea e levar o público a um confronto ao qual não pode escapar com a facilidade com que faz o infinito scroll no Facebook. “Não queremos causar desconforto físico, mas fazer pensar. Existe, por exemplo, um contraste entre as refeições dos refugiados e os encontros faustosos do G20”, diz Rui Neto.

A partir de colagens de textos de Shakespeare, como Hamlet, e da obra do dramaturgo alemão Heiner Müller, que salienta de forma recorrente a importância da revolução, a peça é uma experiência bilingue que se pretende altamente interactiva e sensorial. Assim é quando são atribuídos importantes cargos da política mundial às personagens de Shakespeare, que se vêem pessoalmente questionados sobre assuntos como o encerramento de fronteiras, o "Brexit" ou o movimento LGBT. Ou quando o público fica isolado no escuro cerrado a ouvir o discurso de anúncio da candidatura de Donald Trump à Casa Branca, em que o republicano promete construir um muro para travar a imigração. Miguel Sobral Curado, responsável pelo espaço sonoro, refere que “o uso de seis colunas serve para criar a curiosidade no público e, de facto, fazê-lo ouvir”.

A soberania do digital na vida humana é, a par da crise na Europa e do poder desproporcionado dos grandes líderes mundiais, a questão central. “Queres dominar o mundo? Descarrega a nossa aplicação, recebe uma licenciatura grátis e ganha acesso ao lóbi do poder”, ouve-se no decorrer do espectáculo. Segundo Teresa Sobral, as pessoas "já não se questionam” nem “perdem tempo a olhar umas para os outras só porque sim”. A comunicação está a sofrer mudanças que cada vez mais têm repercussões sociais e políticas. “Hoje em dia, só se presta atenção a gifs e memes. Tenho a certeza de que haverá por aí um meme do Hamlet a dizer ‘Ser ou não ser – eis a questão’”, diz a actriz, enfatizando o lugar da mensagem em cima do palco: “Para mim o teatro é um espaço político e importa sempre o que vou dizer."

Muito presente em Trocava a minha fama por uma caneca de cerveja está também a dicotomia entre a revolta no passado, feita tradicionalmente nas ruas, e a passividade da era digital, em que a inconsciência de gostos e partilhas ajuda à camuflagem dos verdadeiros problemas. “Já estamos em guerra, apesar de não nos apercebermos. A nossa maior arma é o clique”, afirma a também encenadora.

O teatro de William Shakespeare aborda as pedras basilares da condição humana e é por isso que a sua obra continua a ser utilizada para contar os dramas da actualidade. “Se o texto for bom, nunca deixa de fazer sentido, como em qualquer autor clássico”, diz Teresa Sobral. Já Rui Neto acredita que “é importante a relação que há com as obras e o que se pode transmitir ao público de hoje a partir delas”.

O certo é que a frase “Esta consciência faz de todos nós covardes”, uma das mais marcantes passagens de Hamlet, fica a pairar sobre o público depois de uma intensa dose de reflexão social e política. É então que, depois de activado o exercício de pensar sobre o mundo que nos rodeia, estamos mais perto de deixar de ser reféns dos ecrãs.

Texto editado por Inês Nadais

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