O teatro grego dos Blitz não é repórter da crise

Prato forte do programa Bom Dia, Atenas, a companhia grega Blitz apresenta em Lisboa dois espectáculos numa semana. Em comum, um plano de fuga à realidade.

Fotogaleria
FOTO: ELINA GIOUNANLI
Fotogaleria
FOTO: ELINA GIOUNANLI

Se nunca tiver ouvido falar no Institute of Global Solitude não se preocupe. Não se trata de uma organização clandestina difícil de captar pelos radares mediáticos, nem tão-pouco uma sociedade de fachada para esconder actividade menos lícitas. Nem sequer um daqueles clubes exclusivos com estatutos guardados num cofre e cuja admissão depende sempre de se conhecer alguém que sabe a que campainha tocar. No caso do Institute of Global Solitude as regras também não são muito claras. Podem, num dado momento, determinar que não se pode falar ou ingerir sólidos e líquidos durante um longo período de tempo ou proibir claramente a destruição de quaisquer objectos num acesso de fúria ou momento indecisão. E logo a seguir negar tudo isto. Podem até declarar que o avô de Heidi, a menina saltitante das montanhas suíças, é inspirado numa personagem de Tchékhov. Ou assegurar que é aqui, neste Instituto que sexta-feira se apresenta ao público lisboeta na Taberna das Almas (aos Anjos), que alguém se pode pacificar com a vontade de estar só.

O fictício instituto é uma proposta da companhia grega Blitz – presente em dose dupla no programa Bom Dia, Atenas, iniciativa conjunta dos teatros municipais de Lisboa Maria Matos e São Luiz –, com o propósito de “cartografar a solitude” um pouco por todo o mundo. Aggeliki Papoulia, Christos Passalis (dois frequentadores do cinema de Yorgos Lanthimos, realizador de Canino e A Lagosta) e Giorgos Valais não se lembram muito bem como chegaram aqui. Têm uma ideia vaga de que tudo poderá ter nascido da ressaca da sua anterior encenação de Tio Vânia, de Tchékhov, e identificam uma irmandade com a outra peça que apresentarão em Lisboa, 6 a.m. – How to Disappear Completely (9 a 11 de Dezembro, São Luiz). Ambos os espectáculos partem de uma certa recusa do mundo, escolhendo como conceitos a solitude e o desaparecimento, como fundamentos para subtrair o indivíduo à sociedade em que vive e que define a sua existência. Com uma configuração algo poética, são duas propostas de resistência individual. Mas os três não sabem muito mais do que isto sobre o instituto.

Até porque quando aterraram em Lisboa, em Outubro, para preparar esta apresentação com oito artistas portugueses (que responderam a uma apelo do Maria Matos), traziam apenas consigo o título do espectáculo que montaram já em Beirute. O resto era apenas a proposta para que cada um fosse pensar e recolher materiais que se relacionassem com a noção de solitude – que fazem questão de diferenciar de solidão. “A solidão não é tão interessante, é sentimental – e não queremos saber disso”, separa Passalis. “A solitude é uma escolha, é uma decisão que alguém toma na sua vida. Como o fizeram Wittgenstein, Nietzche ou Emily Dickinson.” Nietzche retirado do mundo para criar um espaço de reflexão é uma coisa; a solidão de alguém de dedos empinados sobre um teclado a despejar palavras no Facebook é outra bem diferente, comparam os gregos. “A solidão é como que um subproduto capitalista, resultante da forma como a sociedade foi construída. A solitude é mais persistente, é uma ideia que atravessa séculos, países e mentalidades.”

Não querendo carregar nessa tónica, a verdade é que há uma inevitabilidade política apensa a esta “forma de resistência que passa por não jogar de acordo com as regras que a sociedade onde nascemos nos transmite”. Descartar as regras comuns e fabricar regras próprias implica sempre um posicionamento perante o colectivo. A solitude, ressalvam, pode ser posta em marcha sem implicar ir viver para o deserto. Não obriga a viver enquanto excluído e deixar de ser membro funcional de uma sociedade. Trata-se antes de uma forma de reclamar o controlo sobre a vida de cada um à mais pequena escala. “Está, por vezes, muito próximo do misticismo ou até da procura individual”, sustenta o actor, cujos heróis eram quase todos “pessoas solitárias, e não propriamente party animals”.

“Embora não esteja no centro do trabalho, a aura política é inevitável”, garante Raimundo Cosme, um dos oito actores portugueses que ajudam a edificar Lisboa como uma pomposa Capital Mundial da Solitude 2016 – já dá para imaginar chusmas de gente a aterrar em Lisboa para aprender alguma coisa sobre estar sozinha. Raimundo, fundador da companhia Plataforma 285, a precisar forçar-se a trabalhar fora do seu núcleo habitual para contrariar os vícios daí decorrentes, foi atraído pela temática – “todos os espectáculos acabam contaminados pelas ideias de solidão e morte, nem que seja como medos últimos de todos”, justifica –, mas estava também interessado em ver que discurso teatral poderia nascer de “dois países lixo a trabalharem juntos neste momento e nesta Europa”.

Marta Bernardes, outra das participantes portuguesas, descreve a conferência sobre a solitude – peça central da apresentação pública do instituto – como algo de “muito parecido com o jazz”. Ou seja, todos os materiais compilados pelos oito, próprios ou de outros autores – “se é Picasso ou Britney Spears, é-nos igual”, palavra de Blitz –, observações do mundo, dados estatísticos, passagens fantásticas e toda a sorte de elementos ligados de forma mais ou menos directa com a solitude constituem um manancial previamente ensaiado de recursos que podem ser utilizados durante o espectáculo – numa ordem que não se encontra fixada e integrando um leque de hipóteses possíveis para cada momento. Para chegarem a este conjunto de ferramentas, no entanto, houve muita discussão prévia, para aferir do interesse, da compatibilidade e das questões levantadas por cada material. A construção do espectáculo, acrescenta Marta, “é um processo absolutamente político, um processo de negociação contínuo”.

Foto
FOTO: ELINA GIOUNANLI

Um novo começo

Se a solitude alastra a este programa composto por uma conferência, encontros de um para um entre actores e público, visitas guiadas pela vizinhança e abertura de portas de um Museu da Solitude, numa necessidade de recolhimento que Christos afirma responder também “a uma pornografia de informação e de estímulos à nossa volta”, em 6 a.m. a âncora do desaparecimento prende-se a três referências concretas: Stalker, filme de Tarkovski; Lamento de Menon por Diotima, poema de Hölderlin; e uma área de construção.

Após uma Trilogia do Fim terminada com a peça Late Night, 6 a.m. foi pensado pelo Blitz como um novo começo. Após o fim da noite, o começo de um novo dia. “Devia ser uma peça mais optimista”, comenta Aggeliki, pouco convencida de que o tom esperançoso não fure apenas no final do espectáculo. A Tarkovski, explica a actriz, quiseram ir buscar “um espaço estranho, em que acontecem coisas mágicas, não realistas e em que os actores tentam comunicar com aquilo que está acima deles”. Mas 6 a.m., que os próprios consideram a criação mais estranha do seu reportório, vinca um corte definitivo com a realidade. Se até aqui o estabelecimento de uma relação entre o palco e o mundo fora da sala de teatro e a cidade em que viviam tinha sido uma preocupação, a partir deste ponto optaram por fechar a porta à realidade e preferiram tactear atrás dos passos de Hölderlin. “Gostaria que fôssemos mais corajosos”, confessa Christos. “Mas não tínhamos a bravura mental do Hölderlin para conseguir segui-lo o tempo todo. Não conseguimos alcançar uma narrativa que tivesse o triunfo final que ele tem.”

Passalis não esconde a admiração por alguém que na sua poesia faz uma travessia pela dor sem se deixar corromper pelo cinismo – “é algo que jamais conseguiria fazer, sempre que passo por algo catastrófico na minha vida viro-me sempre para o cinismo”. Onde Hölderlin descobre uma saída brava num cenário carregado de impossibilidades de escape, também os Blitz quiseram encontrar essa saída quase religiosa. Daí que a área de construção funcione como saída ou “entrada para algo exterior ao mundo, com um valor mais espiritual”, lembra Giorgos.

Por muito que o Blitz tente limpar qualquer indício de que a crise social e económica na Grécia contamina estas peças fundadas em movimentos de recolhimento e de recusa do colectivo, numa tentativa de cortar amarras com os mandamentos da sociedade e numa negação da realidade, as duas propostas tresandam a essa fatal actualidade. Aggeliki frisa que não há no seu trabalho qualquer tentativa de “mostrar o que tem acontecido na Grécia nos últimos cinco anos”. E, de facto, não há literalidade neste teatro. “Não somos repórteres da crise”, afirma. Até porque a crise sempre esteve presente nas suas vidas. A diferença, nota Christos, “é que é preciso uma crise económica para se compreender todas as outras crises”. Se o sexismo e o fascismo quotidianos nunca deixaram de mostrar-se no país, a queda da máscara de algum bem-estar financeiro deixou todos esses podres à vista.

A poesia aparece aqui como consolo. E a fuga à realidade como mecanismo para lhe poder sobreviver.

Sugerir correcção
Comentar