O teatro de uma cidade pequena, sem bar

Com o seu teatro enamorado pelos pormenores, Tina Satter tornou-se uma das mais curiosas e estimulantes criadoras da downtown nova-iorquina. Em House of Dance,de sexta a domingo na Culturgest (Lisboa), faz-nos partilhar uma hora com quatro personagens abrigadas do mundo.

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Tina foi preenchendo na sua imaginação tudo aquilo que a povoação não tinha. Será certamente dessa experiência que nasce o seu teatro JULIE MACK

Hopkinton é uma pequena cidade norte-americana localizada no estado de New Hampshire, com uma população ligeiramente acima dos 5.000 habitantes. É um daqueles sítios onde não se passa nada, nem uma única menção nas listas de 20 Coisas a Fazer em New Hampshire deste ou daquele site. É um daqueles sítios capazes de listarem no seu descritivo de autóctones notáveis a primeira domadora de leões dos Estados Unidos (Rose Bascom), cuja morte prematura em 1915 ter-se-á devido à infecção provocada pela patada de um dos animais à sua guarda.

Passa-se e passava-se tão pouco em Hopkinton que, quando Tina Satter por ali cresceu, na década de 80, não havia sequer um bar onde anestesiar dores e males de espírito. “Era uma cidade simpática”, jura a dramaturga, “não era daqueles lugares pequenos de onde as pessoas tentam desesperadamente sair. Era um pouco mais snob do que isso. As pessoas iam para ali para viver longe da agitação dos grandes centros.” “Nada de Dirty Dancing”, ri-se, porque no filme grassava precisamente a replicação do arquétipo de fuga dos limites acanhados da terra.

À medida que os anos avançavam, as faltas de Hopkinton foram-se tornando mais óbvias para Tina Satter. Aquela cidade composta somente por habitantes, residências e comércio essencial parecia-lhe estar quase em branco (uma cidade por completar), e Tina foi preenchendo na sua imaginação tudo aquilo que a povoação não tinha. Será certamente dessa experiência que nasce o seu teatro – são os pequenos contextos e as pequenas comunidades que lhe interessam, o quotidiano pouco extraordinário, as pessoas vulgares, de aparelhos nos dentes ou cortes de cabelos duvidosos, os sonhos que se medem numa curta escala que, muitas vezes, termina logo ao virar da esquina. “Vivendo em Nova Iorque, onde estou agora”, acrescenta Satter, “vejo igualmente muita gente enterrada nos seus pequenos apartamentos a sonhar com um concurso de dança ou algo assim.”

Não é acidental que aqui cheguemos – a esta sugestão de um concurso de dança que a dramaturga concebe como “uma ideia universal” de realização pessoal. House of Dance, a sua peça de 2013 que a Culturgest (Lisboa) apresenta desta sexta-feira até domingo, foi criada em resposta à encomenda de Richard Maxwell, dos New York City Players, quando Satter se encontrava em digressão de Seagull (Thinking of You) – “como se alguém pegasse n’A Gaivota, de Tchékhov, a colocasse dentro de um globo de neve e o agitasse”, descreve Satter. “Estava esgotada e disse-lhe que não tinha ideia nenhuma para propor.” Maxwell não desanimou e respondeu-lhe com medidas restritivas destinadas a espicaçá-la: o elenco não deveria ultrapassar os quatro actores, a duração não deveria exceder os 70 minutos e, como trabalho de casa, Tina deveria dar forma a toda uma cidade imaginária. Ela aceitou o desafio, mas nem foi preciso arquitectar muito a cidade – não chegou sequer a fantasiar a existência de um bar. Quando entrou no Abrons Arts Center, em Nova Iorque, onde o espectáculo deveria estrear-se, já sabia que não queria usar o palco principal e também não se sentia muito seduzida pelas black boxes. Até que lhe mostraram “uma sala de ensaio muito merdosa, com espelhos”, que logo lhe pareceu “um reles estúdio de sapateado”.

Não precisava de mais nada. A cidade seria o exterior, o lugar de que estas quatro personagens se abrigariam durante uma hora.

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JULIE MACK

Pormenores
Lee aparece no estúdio de sapateado a fim de se preparar para uma competição – uma grande competição, pelo menos na sua vida. Martle, o professor, e Brendan, o acompanhador ao piano, ajudam-no nesta missão. E sem sair daquele espaço do estúdio de sapateado, aquilo a que se assiste é inesperadamente próximo da linguagem de uma sitcom televisiva, revestido, ao mesmo tempo, de uma candura e de uma inocência que não estão exactamente apontadas ao riso. Na definição de Tina Satter, o universo de sitcom é aqui colonizado por um tom de “poema louco e negro”. E a autora não estará tanto a falar da sombria e excêntrica pequena encenação de dança de Halloween que se abate sobre parte da peça, antes sobre a peculiar figura de Lee, este miúdo que quer ser algo mais na vida mas não tem grandes certezas acerca do que isso pode, afinal, significar. “Ele tem a crença de que este estúdio de dança pode ajudá-lo a alcançar uma versão de si mesmo que nem sequer consegue ainda imaginar”, confirma Satter.

Há em Tina Satter, já o escrevemos antes, uma atracção óbvia por dramatizar os pequenos acontecimentos do dia-a-dia. As suas peças não encerram grandes chaves morais nem põem em cena imparáveis empresas de vinganças de enredo sinuoso. O fascínio do seu teatro está em conseguir tratar dramaturgicamente o momento em que duas pessoas se olham e não sabem como passar do silêncio à palavra, quando o medo de estragar esse encontro é tão dominador que os nervos ganham vantagem e não se arrisca dizer uma frase que soe como uma estupidez trovejante e possa ter a dimensão de uma catástrofe. “Quando alguém se vira e olha para outra pessoa, isso é para mim algo tão excitante quanto uma grande explosão”, comenta. “Gosto de pormenores.”

É esse olhar de Lee na direcção de Martle, implorando a sua ajuda, depositando nele a esperança de que a sua vida possa estar a caminho de uma mudança, que primeiro comove a autora em House of Dance. Martle tenta assegurar-se de que Lee, na sua apresentação a concurso, levará um número de sapateado que conte uma história. E parece dirigir-se ao mesmo tempo, num vislumbre de auto-ironia, à própria Tina Satter, como uma provocação em que a personagem diz à dramaturga que esta precisa de uma narrativa. “Interessam-me as diversas formas que uma história pode assumir e também perceber por que razão temos de ser tão obcecados com isso”, responde ela. “Na vida nada parece ter princípio, meio e fim. Percebo perfeitamente por que razão isso pode satisfazer a nível intelectual e emocional. Também encontro na televisão que vejo essa forma muito reconfortante. Mas as histórias não podem ser só isso.”

Essa foi a lição que aprendeu também com as companhias Elevator Repair Service e Nature Theatre of Oklahoma, referências fundamentais na sua obra para a Half Straddle. Foi com elas que percebeu o desafio de construir um mundo com aquilo que sabe. Tina Satter não faz investigação, escreve a partir daquilo que naturalmente conhece. Escreve a partir de uma cidade pequena onde nem sequer há um bar.

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