O “t’avonde” de Edgar Massul

Em Faro, Edgar Massul diz “basta!” à destruição desenfreada do meio ambiente através de um projecto original

Foto
Na série Das tuas margens, algumas plantas espremidas, 2014, Edgar Massul desenha com lama, folhas, palha e frutos DR

“T’avonde” é uma expressão do falar algarvio, caída hoje em desuso, que exprime a ideia de “basta!”. Edgar Massul, a viver no Algarve há alguns anos, quis inscrevê-la nas paredes de uma ruína situada numa das entradas da Ria Formosa. Pretendia usar terra de Silves como matéria-prima desta escrita, uma terra de um vermelho argiloso que se tornaria bem visível no lugar. Contudo, não foi possível concretizar esta peça, que existe apenas em projecto, e como tal foi escolhida para imagem da exposição #other free works, a última de um ciclo organizado pela licenciatura em Artes Visuais da Universidade do Algarve.

É verdade que a fotografia, tal como está, exprime bem o conceito desenvolvido por Massul. A estranheza da palavra, que é exclusiva desta região, pressupõe uma voz local, revoltada com os atropelos urbanísticos e ambientais a que o Algarve tem sido sujeito durante as últimas décadas. A ruína, que existe e é visível em alguns pontos próximos dos locais da exposição, simboliza desde há muito a reflexão que a arte realizou sobre a decadência e a morte. Dito de outra forma, a ruína sempre foi um suporte para pensar a passagem do tempo.

E é disso que trata #other free works, em dois locais distintos. Na Galeria Trem, completamente escurecida para esta ocasião, Teu espelho, 2013 compõe-se de uma lona impermeabilizada onde se instalou um lençol de água com areia no fundo. Graças a um dispositivo de luz, os movimentos suaves da superfície líquida reflectem-se numa parede. Dentro da água está um conjunto de sacos de serapilheira; Edgar Massul diz-nos que a água, que veio da Ria Formosa, foi transportada para a galeria em contentores, congelada, e que os sacos estavam dentro dos blocos de gelo. O processo de descongelamento foi registado em fotografia, dia a dia, bem como as alterações provocadas na forma dos sacos. Houve assim uma apropriação pela arte da mudança provocada por um fenómeno natural, o da passagem do estado sólido para o líquido, e um registo quase científico desta transformação. As imagens do processo estão colocadas à entrada da galeria. Podemos antecipar que ainda está em curso: a água do lençol acabará por se evaporar, e os objectos mudarão novamente de forma, uma vez secos.

Uns metros adiante, no claustro do Museu Municipal, há uma escultura composta por placas de cortiça queimadas presas por cintas, thermal body (mother), 2013. A peça, que ocupa o centro do jardim do claustro, é feita de restos do grande incêndio de São Brás de Alportel há um par de anos. Ou seja, há aqui uma convocação da acção do fogo, ao passo que na primeira obra o artista se servia da água. Os dois restantes elementos, o ar e a terra, estão presentes nas duas últimas peças expostas: uma série de desenhos lindíssimos feitos a partir de lama, folhas, palha, frutos prensados no papel. Apenas vemos os restos deste processo e os rastos que o manusear da matéria deixou, em peças delicadas que recordam a austeridade do desenho oriental. Das tuas margens, algumas plantas espremidas, 2014, assim se chama esta série, completa-se com um livro de artista: Formosa, a love story book, 2014, realizado segundo um processo semelhante, mas agora utilizando a própria areia da ria. Encadernado artesanalmente, deixa-se manusear, permitindo-nos adivinhar os caprichos da terra sob a acção das águas.

A fragilidade ambiental da Ria Formosa é sobejamente conhecida. Edgar Massul, contudo, não apresenta aqui uma obra apologética nem panfletária. Ao invés, reproduz a frágil coexistência entre os elementos em que os antigos divididam o mundo natural. A sua obra refere-se a um mundo pré-moderno, um mundo que ainda hoje existirá talvez nos recônditos da serra ou nos braços mais escondidos da ria. Trata-se de um mundo em mutação — mesmo o fogo, que consumiu a serra, é parte integrante da floresta —, mas uma mutação que, dentro de um mesmo, se traduz sempre em algo diferente. Somos lembrados a cada passo daquela afirmação de Heráclito de que ninguém se banha duas vezes na mesma água de um rio, tanto porque a água flui, como porque nós próprios estamos em constante mudança. Estes precários momentos, como a mudança que lhes é subjacente, são o motor de todo o trabalho de Edgar Massul. O que nos permite regressar, em círculo, ao momento inicial da exposição, quando a fonte de luz permitia dar a ver os movimentos hipnotizantes da superfície da água. Hipnotizantes e cinemáticos, tal como a própria afirmação de Heráclito. 

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