O sonho de um DJ

Viagem a um estado de espírito e a uma mitologia: a década em que o rock salvava vidas

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Harvey Bassett, verdadeira estrela DJ — pela pose, pelos sets de oito horas, pela documentada vida de excessos —, teve um sonho rock’n’roll iluminado pelo sol da Califórnia, do diabo e do surf

Uma dezena de canções em modo jam psicadélica, kraut à Nick Cave, Hendrix à solta em iate no Pacífico, funk bronzeado por sol californiano. Não, não era isto que esperávamos de DJ Harvey, inglês nascido em Cambridge, baterista adolescente, no final dos anos 1970, da banda pós-punk Ersatz e, depois de uma viagem reveladora a Nova Iorque, DJ responsável pela divulgação em Inglaterra do disco enquanto matéria de bom gosto, do electro e do house enquanto som do futuro.

Não era isto que esperávamos, mas a surpresa não podia ser melhor. Wildest Dreams é uma viagem ao passado. Ou melhor, a um certo estado de espírito e a uma mitologia de época: a década de 1970 e o rock como salvador de vidas, como guia existencial, como banda-sonora de todos os sonhos.

DJ Harvey, verdadeira estrela rock’n’roll pela pose, pelos sets de oito horas, pela documentada vida de excessos, juntou-se durante uma semana, há dois anos, a três dos Orgone, banda de funk e soul de Los Angeles, onde vive actualmente. Produziu, tocou bateria, cantou e pegou na guitarra. Escolheu para capa uma recriação da do álbum de estreia de Randy California, guitarrista dos Spirit, intitulado Kap. Kopter and the (Fabulous) Twirly Birds e editado em 1972. As citações, de resto, abundam: há a capa, há a linha do piano Rhodes de Riders on the storm, dos Doors, trazida para Pleasure swell ou a apropriação do I’m so glad interpretado pelos Cream, aqui transformado em Gipsy eyes — é a cabeça de DJ a funcionar, procurando estabelecer pontes, apontando referências, levando aquilo que é familiar a novos territórios (processo semelhante, ainda que partindo de outras esferas musicais, ao que originou em 2007 os Map Of Africa, fruto da colaboração com o conterrâneo e co-conspirador Thomas Bullock).

Harvey Bassett, tratemo-lo pelo nome de baptismo, descreveu o álbum como “rock satânico californiano com um toque surf”. Aceitemos a palavra do criador. Ainda que não corresponda exactamente ao que ouvimos, é uma imagem forte. Wildest Dreams é verdadeiramente um sonho: uma banda totalmente livre para agarrar o que lhe aparecer pelo caminho. E aparecem sereias montadas em skates logo a início — com Harvey a cantar no modo pregador alucinado de Nick Cave, sob uma jamrock’n’roll de guitarras cristalinas e teclados vintage em tangente ao funk. Aparece-nos a imagem de uns Deep Purple, os iniciais, os de Hush, em felicíssima rebaldaria com os Bar-Kays, e o resultado é Last ride: a voz surgirá apenas aos três minutos, para que mergulhemos no groove e acolhamos Harvey Bassett em modo herói marginal saído inesperadamente de uma viela escura (gloriosa canção).

Ouvimos yatch-rock com órgão Rhodes a iluminar o caminho e batida perfeita para pôr hormonas em sobressalto (405). Mais à frente, em Off the lip, a curiosidade pelo cosmos dos Pink Floyd une-se ao prazer fusionista funk e rock de Sly & The Family e convoca-se o espírito de Jimmy Smith, o mago do Hammond, para colar todas as peças.

Não, não é afinal nada estranho que DJ Harvey tenha editado um álbum como Wildest Dreams. É álbum de banda inspirada, é álbum de DJ melómano muito entusiasmado por partilhar os seus fascínios com o povo que o ouve. Wildest Dreams é título apropriado. Uma óptima surpresa.

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