O senhor Emílio

Na casa antiga do Paulo Brandão e da Cláudia Esteves, o senhor Emílio entrava de mão dada com a dona Cindinha e sorria. Já não tinha facilidade em caminhar ou falar, mas sorria com o milagre de quem entregava a alegria de que era capaz.

As netas nasciam como flores da tarde em seu torno e ele recebia os beijos e os abraços sinceros com aquela felicidade simplificada dos que já só vivem para uma felicidade simplificada. A dona Cindinha, sempre muito bonita e atenta, era a graça do senhor Emílio. Juntos serviam por exemplo de resistência e brio. Presto muita atenção a quem defende o amor mesmo diante da violenta perturbação do corpo, diante da tirania da idade. Prestava atenção à beleza da dona Cindinha e em como acompanhava com elegância o sorriso inteiro do senhor Emílio.

Durante as pequenas festas, o senhor Emílio assistia-nos e sorria sempre. Era verdade que apenas isso bastava para que víssemos. Quando saía, a sala toda escurecia. Notávamos a sua ausência nas cores subitamente esmaecidas de todas as coisas.

Naquele tempo, a Catarina era muito menininha e tinha ideias literárias. Dizia frases lindas e desconcertantes que nos levantavam dúvidas acerca de ela ter poderes mágicos. Achávamos que se alguém aprendesse a voar como os pássaros haveria de ser ela. Observávamos a Catarina como quem esperava eventos impossíveis. A Ana organizava peças de teatro e de dança, apostámos todos que ela cresceria para ser uma grande artista, e ríamo-nos também. Assistíamos às crianças, que são sempre a história mais incrível de se ver contada.

Lembro-me bem da generosidade da Cláudia a cozinhar coisas boas e esquisitas, que eram também boas, como se não demorasse nada, como se não custasse nada. A sua cozinha era uma indústria intuitiva que magicava maravilhas. Digamos que tinha uma intuição rigorosa, porque tudo dava certo. Eu, que falho ainda a fritar ovos, experimentei algumas ideias e nada me saiu remotamente parecido. Há alguma coisa no que a Cláudia escolhe que divide o mundo da sua comida e o mundo da comida comum.

A verdade é que as tardes se passavam como tempos normais. Uma espécie de confusão elementar que vinha das diferenças de cada um, mas uma confusão alegre, cheia de esperança, creio eu. Penso hoje que o símbolo último desse sentimento residia no sorriso limpo do senhor Emílio. Um sorriso que, de encontro à mais pura dificuldade da vida, revelava ainda o ensejo de estarmos todos bem. Essa é a única esperança.

Quando o senhor Emílio faleceu, ficou nas nossas mãos a obrigação de lhe lembrar o ofício de sorrir pela esperança.

A vida é uma originalidade. Por mais planos que façamos, estaremos, subitamente, num ponto mudado, até irreconhecível. Seremos constantemente confrontados com a necessidade de dar provas, a começar perante nós mesmos, acerca da manutenção da dignidade e da boa vontade. Quando as coisas mudam, vemo-nos desamparadamente novos, vagos na identidade, porque afinal as convicções eternas morrem. Tendemos a ver demasiado o presente como se fosse tudo. Mas o presente a todo o tempo morre também. Nós somos sobretudo o ímpeto entre isto e outra coisa.

Carrego quanto possa com a folia de não me esquecer de nada, de ninguém, de nenhum amor, nenhum afecto. Seria cruel demasiado que tivéssemos mesmo de jogar no lixo o carinho que sentimos por alguém. No ímpeto entre isto e outra coisa coloco o sorriso do senhor Emílio. Não vai como pousado numa mesa bonita, enfeitando a casa da vida. Vai como lâmina que corta pelo denso das dificuldades. É uma arma contra todo o futuro que me queira fazer feio o passado.

O Jorge Sousa Braga dizia que mataria o Eugénio de Andrade com duas balas de pólen directas ao coração. Só concebo exigir justiça do quanto a vida nos obriga a perder desta mesma forma, ou seja, com os afectos sempre sagrados e a ternura metida no canhão.

Um dia, de algum modo, na Catarina ou na Ana, nos filhos da Catarina ou nos filhos da Ana, alguém sorrirá naquela mesma beleza e eu saberei que o senhor Emílio, dentro do que é possível, voltou.     

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