O romance perdido de Malcolm Lowry

Julgava-se que nada restava de um romance em que o autor de Debaixo do Vulcão trabalhou durante pelo menos nove anos. Mais de meio século depois do incêndio que consumiu essas páginas, uma versão mais curta foi entregue na Biblioteca Pública de Nova Iorque. Agora chegou a tradução portuguesa.

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Em Junho de 1944, um incêndio destruiu completamente a cabana de pescador na praia de Dollarton, perto de Vancouver, Canadá, onde o escritor inglês Malcolm Lowry (1909-1957) passava temporadas com a sua segunda mulher. Do meio das chamas, Lowry conseguiu salvar o manuscrito de Debaixo do Vulcão, considerado uma obra-prima do modernismo britânico e um dos melhores romances do século XX. Mas apesar dos esforços, e com risco da própria vida – sofreu queimaduras graves nas costas devido à queda de uma trave de madeira em chamas, conforme conta um amigo em The Letters of Malcolm Lowry and Gerald Noxon –, o escritor não logrou pôr a salvo um outro manuscrito (cerca de mil páginas, confessa numa carta a Noxon) em que trabalhava havia pelo menos nove anos, e que intitulara In Ballast to the White Sea (Rumo ao Mar Branco). Não há qualquer registo de que Lowry tenha sequer ensaiado a reescrita desse livro – que, na trilogia de inspiração dantesca que se propusera escrever, seria o correspondente ao Paraíso; Debaixo do Vulcão corresponderia, claro, ao Inferno e Swinging the Maelstrom ao Purgatório. O romance foi dado como perdido.

Em 2000, mais de meio século passado sobre o incêndio, a primeira mulher de Malcolm Lowry, Jan Gabrial (a quem o romance foi, parece que muito justamente, dedicado), anunciou ter uma primeira versão do manuscrito (com as respectivas notas esquemáticas do autor): cerca de duas centenas e meia de páginas. Essa versão fora deixada com a sogra do escritor, em 1936, quando o casal se mudou de Nova Iorque para o México. Em 2003, dois anos após a morte de Jan Gabrial, o seu executor testamentário entregou na Biblioteca Pública de Nova Iorque uma cópia dactilografada do manuscrito (um trabalho feito pela própria Gabrial em 1991). Depois de estudado por um grupo de investigadores, o romance – uma espécie de “elo perdido” entre Ultramarina (1933), o seu primeiro livro, e Debaixo do Vulcão (1947) – viria a ser publicado em 2014. Chega-nos agora a versão portuguesa, com uma magnífica tradução (e notas) do poeta Daniel Jonas, que também assina um excelente prefácio.

Lê-se nesse prefácio: “É claro que este esqueleto de In Ballast [to the White Sea], não sendo propriamente o cadáver do romance enfunado de Lowry, não deixa de se constituir como uma espécie de caveira sobre a qual espreitamos num afã anatomo-patológico de tentarmos imaginar como seria a sua carne, a sua pele e as suas feições.” Ora, é óbvio que Rumo ao Mar Branco é uma obra inacabada. Percebe-se isso nos diferentes ritmos narrativos, em partes que poderiam suportar um outro desenvolvimento (os derradeiros capítulos desta versão são um exemplo disso), mas sobretudo na história de uma demanda que parece ficar incompleta. Se entendermos esta narrativa de Malcolm Lowry como um Bildungsroman (“romance de formação”), então essa incompletude é demasiado óbvia. Poderíamos argumentar, como aliás parece sugerir Daniel Jonas no prefácio, que dada a “estética de excesso” cultivada por Lowry, este romance “idealmente excessivo” teve o fogo como grande editor. Na verdade, grande parte da enorme qualidade literária das obras do autor inglês deve-se exactamente a esse “excesso”, ao nível de profundidade a que por vezes chega com o exagero de efeitos aplicados na escrita, incluindo múltiplas intertextualidades e contínuos diálogos surdos com autores que são sempre convocados.

Não adianta elaborar como seria o romance completo: ele teve apenas um leitor-autor, e esse leitor está morto; nem podemos sequer ser “arqueólogos-leitores” (ao contrário do que afirma Daniel Jonas), porque o que nos é dado a ler não é um romance truncado de partes que o tempo fez desaparecer, antes um edifício inacabado, com segmentos perdidos, e cuja estrutura de muitos andares ficou para sempre por preencher com paredes e pormenores arquitectónicos.

Ansiedade de influência

Rumo ao Mar Branco narra-nos a história de dois irmãos, Tor e Sigbjørn, nascidos na Noruega, criados em Inglaterra (estudaram em Cambridge) e filhos de um armador pouco venturoso – a mãe está morta. Quase de início o foco começa a centrar-se no segundo, e pressente-se um ar de tragédia iminente quando ambos falam olhando a cidade do alto de uma colina junto à estaca que marcava o lugar do último enforcamento (“que do profundo abismo abaixo deles não lhes reflectisse tremulamente os terrores encapotados dos seus próprios vultos”). A Noruega marcará todo o romance, pontuando os pensamentos de Sigbjørn como o lamento por um tempo que ficou por cumprir, por um “paraíso perdido”, simbolismo da falha maternal da qual ele nunca recuperará. “Mas a Noruega deixou-me uma tal ferida que nenhum Verão foi capaz de cicatrizar. Mesmo enquanto rapaz sempre que via uma bandeira norueguesa sentia-me assombrado. Era capaz de ficar sentado no cais durante horas a fio a ver se dava com cargueiros noruegueses.”

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Malcolm Lowry conseguiu salvar o manuscrito de Debaixo do Vulcão, mas não o de Rumo ao Mar Branco

As primeiras dezenas de páginas depressa nos põem a par de um triângulo amoroso com Nina – nota Daniel Jonas que este é nome “de caravela apontada às Índias tornadas Américas”, e na verdade é para lá que Nina ruma depois da morte de Tor, ao mesmo tempo que se separa do jovem idealista Sigbjørn (claramente o alter ego de Lowry, por múltiplas razões), que segue outro rumo, o do Mar Branco. Esta desejada viagem de Sigbjørn (que não chega a completar-se nesta versão do romance) tem duas finalidades: uma é visitar a Rússia “onde se martela o futuro” – uma utopia colectivista que para ele simboliza o devir –, e para isso pretende enbarcar rumo à cidade de Arcangel, nas margens do Mar Branco, e ver a “vasta acalmia branca onde o céu se confundia com o mar e da qual uma nova ordem, ou um novo caos, iria emergir para ele onde a nova ordem já se encontrava”; a outra, fazendo escala na Noruega, é a de conhecer o seu “castrador literário”, o escritor William Erikson, o fictício autor do romance que Sigbjørn quereria ter escrito, Skibets reise fra Kristiania (título na verdade publicado em 1924 pelo escritor Nordahl Grieg, membro do partido comunista norueguês e herói de Malcolm Lowry cuja obra teve um impacto profundo no seu Ultramarina).

Por razões que parecem evidentes, Rumo ao Mar Branco está pejado de referências literárias sofisticadas, não apenas nas epígrafes que abrem os capítulos mas no que vai deixando ao longo do texto, muitas vezes de maneira velada, criando uma textura de diálogo com a tradição literária que o suporta. Não há literatura que não seja, de uma forma ou de outra, um reciclar do que lhe está para trás, mas Lowry torna isso bastante ostensivo ao assumir as suas influências. Mas o que é curioso nele, como nota Daniel Jonas, é que o faz para gerir a “sua” tradição literária: é ele que a dita para que os críticos não lhe venham atribuir outra. Como se com isso quisesse minimizar os efeitos da sua ansiedade de influência, fazendo uso de uma “camuflagem de defesa”. Ao identificar-se intensamente com certos autores (esquecendo outros porventura mais influentes), garante que a sua escrita seja caucionada por um certo cânone. A personagem Sigbjørn, e todos os malabarismos que executa atribuindo “culpas” ao escritor norueguês para justificar a sua “ansiedade paralisante”, é disso um bom exemplo. “Melville achou mesmo que tinha encontrado em Hawthorne um aliado espiritual! Melville achou mesmo que Hawthorne tinha escrito melhor os seus próprios livros! Nao me contavas que tinhas descoberto um norueguês qualquer que escrevera melhor o teu livro?”

Sigbjørn é Lowry, e quiseram o acaso e o fogo que as suas ansiedades de influência fossem também em parte expurgadas, que ficassem elas também truncadas.

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