O road movie literário de David Nicholls

Uma história de amor numa narrativa de formação, a crise da meia- idade, os museus e a viagem.

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Daniel Rocha

Não é a primeira vez que o britânico David Nicholls está em Lisboa. Mas não escolheu a cidade para ser uma das capitais europeias por onde as personagens do seu mais recente romance, Nós (ed. Jacarandá), passam durante a viagem de férias que estão a fazer pela Europa, uma Grand Tour à maneira do século XVIII para preparar o filho para o mundo adulto.

 No entanto a família britânica Petersen - Douglas, 54 anos, cientista especialista na mosca-da-fruta, casado há duas décadas com Connie, 52 anos, pintora, e o filho de ambos, Albie, que está na idade de entrar na universidade -, chega até à península ibérica mas não passa a fronteira de Espanha para entrar em Portugal. “Senti que Espanha era o sítio certo para parar”, conta o escritor, de 48 anos. “Havia muitos sítios sobre os quais gostaria de ter escrito. Queria escrever sobre Berlim, houve uma altura em que o último capítulo terminava em Copenhaga, havia muitas cidades que me fariam muito feliz se as tivesse conseguido incluir no livro, mas era preciso que o mapa, o itinerário, funcionasse. Por mim, poderia ter continuado a viajar...”.

No entanto não ter incluído Copenhaga foi uma boa opção pois assim Nicholls deixou o final deste seu quarto romance em aberto. “Esse seria o sítio onde Nós acabaria originalmente. No manuscrito original entraria também a National Gallery em Londres, mas achei que era demais, era melhor terminar com uns três pontinhos... vai continuar.”

Neste livro Nicholls queria escrever sobre uma família, contar uma história de amor do ponto de vista da idade madura e ainda falar de arte através de uma personagem para quem as visitas a galerias e museus podem ser cansativas. Douglas é alguém que se interroga sobre quanto tempo se deve ficar a olhar para um quadro – Connie e Albie têm uma relação diferente com a arte -, embora ao longo da viagem aconteça um ritual de passagem e algo muda na atitude de Douglas.

Infelizmente, da primeira vez que esteve em Lisboa Nicholls não foi a museus ou a galerias de arte. Lembra-se que andou, andou muito. Por isso se as suas personagens tivessem passado por Lisboa fariam o que ele já fez por cá: andar muito. “Gosto de Lisboa para dar grandes passeios, é uma cidade muito bonita e se calhar as personagens perder-se-iam em Alfama ou iriam apanhar o eléctrico 28. Estive aqui da outra vez foram dois dias, foi muito rápido, andei, andei mas não tive oportunidade de visitar museus.”
Comparando com Londres, David Nicholls nota que Lisboa não tem a maldição de estar a ser inundada por lojas de cadeias das grandes marcas. “Ainda está cheia de pequenas lojas independentes, o que é admirável e quase único nas cidades europeias que conheço. Em Londres há cerca de 20 anos todas as ruas de comércio ficaram iguais, as lojas pequenas desapareceram e isso parece estar a acontecer por toda a Europa. Afloro isso no romance. A maneira como Paris deixou de nos parecer particularmente estrangeira... Cada vez mais as cidades nos parecem incaracterísticas, quer se esteja em Nova Iorque, Paris ou Barcelona. Mas em Lisboa ainda parece existir uma quantidade de pequenos lugares únicos o que é estimulante”.

O que falhou e ficou em cacos
Este ano, no Reino Unido Nós/Us esteve na longlist do Man Booker Prize e pelo romance Nicholls recebeu Prémio de Autor do Ano nos National Book Awards britânicos. É o livro que escreveu depois de há cinco anos ter lançado Um Dia, best-seller traduzido em 37 línguas e adaptado ao cinema com Anne Hathaway e Jim Sturgess.
Embora já tenha dito que queria fazer um romance onde se discutisse a maneira como as pessoas vêem e consomem arte, este é um romance sobre os problemas das relações de longa duração. E sobre a relação de um pai com um filho. Logo no início, Connie diz ao marido que se quer divorciar quando o filho partir para a universidade, a seguir à viagem que a família tem programada pela Europa durante o Verão.

Nós é um romance sobre tudo isto. Tem a arte em background, mas é primeiro que tudo sobre relações duradouras, e sobre a meia-idade. Também foi importante o desafio de escrever sobre pessoas mais velhas do que eu, tentar prever o que as pessoas sentem quando envelhecem. Quis escrever uma história de amor que não fosse sobre os primeiros amores, os primeiros encontros, mas sobre o que se sente depois de cinco, dez, quinze ou vinte anos a partilhar a casa com a mesma pessoa. E também sobre o que acontece quando uma terceira pessoa, um filho, entra na vida de um casal.”

Na nona parte do livro de 400 páginas, intitulada Inglaterra, outra vez e a última antes dos agradecimentos, Nicholls brinda-nos com uma epígrafe que é o poema É tão triste, a casa de Philip Larkin (1922-1985): “É tão triste, a casa. Fica como a deixaram,/Afeita ao conforto dos últimos a partir,/Como que para os reaver. Mas, despojada/De gente a quem agradar, vai definhando/Sem alma para esquecer o roubo//(…)”. Larkin é um poeta que Nicholls adora. Também é fã de Nathaniel Hawthorne, Lorrie Moore, Thomas Hardy, Penelope Fitzgerald, Henry James ou Andrew Solomon que estão citados nas outras epígrafes. O sítio onde aquele poema está no seu romance, diz, também é importante. “Não o podia ter colocado num outro sítio que não aquele. Tem de estar exactamente naquele sítio porque nos revela de facto a sua visão da casa, a sua visão de nós, do que falhou e ficou em cacos." E é a porta de entrada para o último capítulo em que se chama a atenção para natureza romanesca do livro, para o facto de ser uma narrativa de formação.

Casamento dentro de parênteses
“Os romances escritos na primeira pessoa são necessariamente artificiais: por que é que esta pessoa [Douglas] está a contar-nos todas estas coisas, e estará a falar ou a escrever, se está a escrever por que é que está a escrever? E se está a falar por que é que está a contar tantas coisas e com quem pensará que está a falar? As narrativas na primeira pessoa são muito estranhas", diz. "Queria mostrar isso e dizer ao leitor que esta seria uma história muito diferente se ficássemos com o Albie, seria uma história muito diferente se ficássemos com a Connie. Um dos problemas com Douglas, no início do livro, é que ele é incapaz de ver o ponto de vista das outras pessoas, está fixo na sua maneira de ver o mundo e no final já está muito mais compassivo e sensível e consegue ver outros pontos de vista” - Nicholls considera que é neste epílogo que está a mais triste frase do livro: “(…) e, entretanto, todos aqueles anos intervenientes, tudo aquilo por que passámos, o nosso ‘casamento’, é contido dentro de parênteses.”

A estrutura do livro contém muitos flashbacks, memórias, as personagens estão em constante movimento ao mesmo tempo que nas suas vidas também vai há evolução. É uma estrutura complexa mas o autor diz que estava tudo planeado na sua cabeça embora não esquematizado. Sabia onde cortar do passado para o presente e sabia como chegar lá e como voltar atrás; como iria ser a viagem, os passos principais e que acontecimentos no passado queria mostrar.

Quando lhe dizemos que no best-seller  Um Dia teve uma ideia genial – um dia, todos os 15 de Julho, na vida dos dois protagonistas ao longo de vinte anos - e lhe perguntámos qual a ideia genial deste novo livro, responde que gosta da ideia de se fazer uma viagem através de um casamento entrelaçada com uma viagem através da Europa.

“Gosto da ideia da Grand Tour, da grande tournée cultural como uma espécie de road movie literário. Pensei durante muito tempo que Um dia tinha aquilo que eles chamam em Hollywood um “high-concept” [um filme cuja trama se resume a uma linha, neste caso um dia na vida daquelas pessoas ao longo de vários anos], e pensei durante muito tempo que se calhar tinha de arranjar algo parecido com isso, uma espécie de “gimmick” [um truque para atrair a atenção do público]. Mas  não queria ficar amarrado a esse tipo de estrutura maluca”.

Os direitos para cinema deste livro ainda não foram comprados, houve interesse mas Nicholls ainda não assinou nada. “Quero que o romance seja um livro durante mais um bocado. É um livro demasiado grande para os 100 minutos de um filme, há demasiadas coisas para pôr lá dentro". Também acha que grande parte do sucesso do livro vem da voz da personagem e isso traz um problema. "O que ele diz alto não é o mesmo que ele escreve, ou melhor, o que sabemos que ele está a pensar. O seu monólogo é muito mais empático e mais divertido do que o seu comportamento e num filme só assistimos ao comportamento das personagens. O cinema é como se fosse escrito na terceira pessoa, estamos de fora a ver o que as pessoas dizem e fazem. Nos romances escritos na primeira pessoa temos acesso directo ao que as pessoas pensam e sentem. Detestaria perder isso, por isso não sei como o adaptar sem usar voz-off, não sei, é um livro  difícil de adaptar."  Será difícil mostrar no cinema o crescimento de Albie porque ele vai crescendo lentamente, ano após ano, e isso é difícil de mostrar no ecrã. "Claro que Richard Linklater fez um filme maravilhoso, Boyhood, e depois de se ter visto isso no ecrã a ideia de ter actores com make up e latex é assustador. Nunca penso em adaptação ao cinema quando escrevo um livro embora saiba que há coisas em todos os livros que escrevi que parecem cinematográficas mas não é algo com que me preocupe. Se acontecer é bom, é como se fosse um bónus extra.”

 

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