O renascimento de Shadi, homem-bomba que não rebentou

Numa peça que fala de recomeços e de regresso a textos bíblicos a partir do caso de um rapaz palestiniano que não se detona, João Garcia Miguel reflecte e procura o espanto diante da incompreensão.

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Três parábolas da possessão Filipe Ferreira
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Em Março de 2002, Shadi Tobasi transpôs as portas de um restaurante em Haifa, e rebentou consigo e mais 15 pessoas.

Na mesma altura, Shadi Hamamreh e um cúmplice, ambos carregados de explosivos, recusaram a ordem de paragem da polícia israelita numa fronteira de acesso a Jerusalém e foram parados por uma rajada de disparos. Shadi Masoul, jovem palestiniano de 12 anos, dirigiu-se igualmente para um posto de controlo à entrada de Jerusalém armado com um cinto de explosivos. Por alguma razão, não se detonou. É este caso específico, de um atentado falhado, que inspira Três Parábolas da Possessão, texto de Francisco Luís Parreira que se estreia esta quinta-feira com encenação de João Garcia Miguel no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa.

Tal como aconteceu com Kaspar Hauser (criança que terá crescido isolada numa cela), compara João Garcia Miguel, também Shadi Masoul foi transformando o seu relato da situação ao longo dos anos. Primeiro, declarou que invadido por pensamentos “nele mesmo, na família, na escola, nos amigos, não se explodiu”. “É o depoimento mais possuído e afectado”, classifica o encenador, mas nos anos seguintes torna-se evidente que “está a construir uma teoria sobre o que aconteceu e ficamos sem perceber se foi uma falta de coragem do momento ou um problema técnico”. “É quase um estado de possessão que o leva a reiniciar-se.”

De facto, Três Parábolas da Possessão insiste na ideia de começos sistemáticos que, como novas oportunidades de nascer, se apresentam como recorrentes negações da morte. Mas o texto é também invadido pelo reconhecimento de uma zona de actuação lógica e moral que se encontra para lá do que é compreensível. “É alguém que se tentou matar em nome de uma questão colectiva, que inclusive tem orgulho em saber que esse gesto será tomado como honra máxima. Há crianças que, com o conluio dos adultos e das mães que as geram para serem mártires, são capazes de se rebentar. Que sociedade é esta em que já vamos neste ponto?”, questiona Garcia Miguel. Na penumbra total, a peça arranca com a descrição de uma brincadeira entre crianças. Um jogo do mártir, em que vários miúdos disputam o papel principal enquanto gritam “Hoje sou eu o morto!”

Puro deleite

Devido a esse mesmo diagnóstico de se viver “uma era do cansaço, do vazio, do esgotamento e do deserto do real”, que o encenador reconhece nos relatos espalhados por jornais, ensaios, textos filosóficos, etc., a ideia de que a humanidade se pode ter perdido a meio do seu caminho leva a um interesse confesso e partilhado por autor e encenador por mitologias passadas e textos bíblicos. “Há uma riqueza no passado”, defende Garcia Miguel, “de que os textos fazem testemunho, dando-nos esse enigmas, segredos, dimensões oraculares a que faz sentido regressarmos para nos relocalizarmos, para ganharmos outra vez distância para pensar.”

O que há de enigmático nos textos, acrescenta, acarreta uma incompreensão compatível com o espanto e a admiração. Essa é outra batalha que João Garcia Miguel pretende travar. Devido às relações institucionais que hoje os rodeiam, argumenta, os artistas estão a perder “o entusiasmo de enfrentar o indizível, o irrepresentável e o invisível”, mastigando espectáculos compreensíveis para um público pouco confrontado com a surpresa. Por isso, João Garcia Miguel diz que quer guiar-se pelo puro deleite, pelo estado de exaltação que encontra na epístola de São Paulo dedicada ao amor. E que encontra num Shadi Masoul que se desliga do propósito que o impelia no seu caminho. Perante uma segunda oportunidade para viver, Shadi ou qualquer um de nós está a tempo de rejeitar um suicídio pessoal ou colectivo e abandonar uma estrada que significa o fim.

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