O que vi seja amor

1. Ouvir um livro antes de o ler, aconteceu antes de eu deixar Lisboa, no começo de Junho. É um livro feito para isso mesmo, ser dito, talvez cantado, como os griots fazem. A primeira vez que vi a palavra “griot” pensei numa criatura lendária, daquelas que os homens esculpiam nos templos ou à entrada das cidades, mas os griots existem em carne e osso até hoje. O pré-poema deste livro é uma definição de griot e diz assim:

Djeli, Griot: artesão da palavra. Guardião oral, oriundo Mandinga. Conciliante contador de histórias. Músico tocador de Kora que abrange tudo. Cadência que sara a voz criada. A fala do encontro.

2. Navegando pela rede, uma das explicações para a origem da palavra “griot” é a palavra portuguesa “criado”. A minha amiga Daniela Moreau confirma, e ela é o ponto de coincidência entre o livro que ouvi em Lisboa e este lugar onde agora o li, no interior de Minas Gerais. Não me tinha ocorrido ao trazê-lo, mas a Daniela passou os últimos anos mergulhada no mundo que os griots cantam e contam, guardando genealogias, herbários, antologias, a história da África ocidental. Então, quando abri o livro, ela abriu no ecrã do computador griots de há cem anos no Mali e no Senegal: por vezes em pé, por vezes sentados no chão, por vezes acompanhando um senhor, porque na tradição os griots eram os louvadores de um senhor, figuras da corte, embora sempre tenham existido griots itinerantes. Griots, resume Daniela, são louvadores, e também estarão no ensaio que ela se prepara para publicar no Brasil, resultado de anos de pesquisa sobre milhares de fotografias do francês François-Edmond Fortier (1862-1928), todo um caleidoscópio novo para o Mali e o Senegal durante a colonização francesa. Neste fim-de-mundo mineiro, que adoptei como oficina, Fortier é uma espécie de espírito da casa. Senta-se à mesa connosco e com os espíritos que vou trazendo, por exemplo, os que estão em medicin. (assim mesmo, sem capitular e com ponto final), de António Poppe, o livro que ouvi antes de deixar Lisboa.

3. (Re) li-o hoje à beira do rio que corre aos nossos pés, forte como uma cachoeira quando encontra pedras, sempre tão forte que adormeço e acordo com ele. O desenho na capa de medicin. é inspirado num estudo árabe de anatomia e foi feito por Joana Fervença numa folha sépia cheia de manchas antigas, o que bate certo com o que está lá dentro, porque medicin. é uma confluência de tempos. Título #23 da editora Douda Correria, pequenas tiragens que nada temem do mercado.

4. A descrição do griot dá o mote ao livro. E então, a primeira palavra do primeiro poema traz-nos do primeiro lugar dos homens à soberba da Europa em 2015: África. Quem escreve fez uma escolha, e di-la num verso brutal:

eu sou o enxuto que guarda o afogado que abriu os olhos.

5. Ao longo do livro há vários versos assim, revelações súbitas no meio da evocação, invocação, convocação, massa genesíaca que vai formar o mundo. António trata cada palavra como porta, botão, oráculo, talismã, então por vezes elas formam um mantra, umas puxando as outras pelo som, outras vezes são uma projecção veloz, umas puxando as outras pela memória. Saber de cor: do coração, nada se aplica tanto ao que o António escreve, para que a palavra seja libertada pela voz e siga. E, de vez em quando, pára tudo, litania, polifonia, génesis, e forma-se uma frase:

revelado vasto para além da matéria

ou:

parece um mortal mas ninguém o viu a não ser vivo

ou sequências que se tornam tributos:

amor que não se morre sagra amor ao amor mesmo

e nós capazes em permanecer no mundo sem temor

matar jamais, morrer se preciso for

6. Este derradeiro verso vem de um dito lendário de Cândido Rondon, o bisneto de indígenas que uniu o Brasil por telégrafo. Rondon disse-o pela ordem inversa: Morrer se preciso for, matar jamais. E em medicin. ganha força de escolha, outra escolha, firme determinação:

Desalojar a violência,

escoá-la ao contemplar

o apego e a aversão,

absolutamente a sós.

É a obstinação libertadora de Mahatma Gandhi, a do homem que

Assopra removendo em diante o lugar dos escravos

Para o poeta, esse homem não está só, há um supremo, nos poemas seguintes há Deus, mas esse supremo, esse Deus estão no lado oposto ao do poder: o não poder. Em medicin., o supremo equivale ao não poder.

7. Rondon é só uma das presenças brasileiras que vão despontando através de medicin., como se, tendo partido de África, António fosse chamando Mediterrâneo, Médio Oriente, Índia, para enfim chegar a essa natureza sorrindo, tingindo, do samba de Cartola. Cá está a Mangueira, a estação primeira, o verde-e-rosa. Cá está o partido alto, o tamborim, o pandeiro. Cá está Caymmi chamando o vento, curimã lambaio, curimã ê. No apogeu da sua natureza, o Brasil é o sopro de pólen neste livro: anunciação.

8. Primeira escolha, guardar o afogado, segunda escolha, desalojar a violência, terceira escolha, o que vi seja amor. Então, não contei, mas amor será a palavra que o griot de medicin. mais faria vibrar nas cordas da sua kora.

Foto

Sugerir correcção
Ler 1 comentários