O que traduz uma teia?

A escrita afirmativa e sempre poderosa, de Rui Nunes, contra uma Europa terminal

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O que escreve Rui Nunes não é nada solar: a ira impera, gerando imagens belas e arrepiantes

“O anjo da História despenhou-se”, qual Ganimedes soçobrado ciciando aos Céus: “Para o Alto!/ É para o Alto que me impele/ As nuvens pairando/ Abaixam-se” (Goethe). Mas do Alto pairam os Carrascos. Está tudo consumado, de Auschwitz a Lampedusa. O destino europeu. A própria derrocada do sujeito que escreve. Podem aquelas palavras parecer enigmáticas, elas são o nome próprio para os três últimos grandes textos de Rui Nunes, intersticialmente enlaçados. Assim como a sua transcrição visual, as fotografias de Paulo Nozolino que subsumem tudo, “o círculo de um espelho”: a terra acabada de ser escavada, um caixão, sobre ele o crucifixo. Na capa de Nocturno Europeu, um círculo de luz onde se desenha, a negro, uma águia, bico bem aberto prestes a abocanhar as presas. E é a luz que impede a luminosidade ainda sem sombras em que sobressai o detalhe; nela transparecem o horror, a devastação, as ruínas, os restos.

Numa só rede, os três textos: Viagem no Outono, edição quase secreta de autor, Nocturno Europeu, que o absorve acrescentando-lhe Outras Viagens (Relógio D’Água); (ou, transigindo, de que lado passarás a morrer, a clarear)? (Língua Morta), e Lampedusa: A Respiração da Água (texto publicado no número 6 da revista Cão Celeste). São eles que segregam dos seus poros uma teia. E, nela, as traves mestras subliminares que insistem, ganhando passo a passo o espaço todo: o campo semântico da invasão, do movimento incessante para a morte. Passagem contínua, interrompida por algumas encarnações, símbolo do caos (Auschwitz, Sarajevo, Alepo), ou por sucessivas configurações da vítima absoluta, desapossada: a mulher-a-dias, que se levanta e levanta o chão com ela, Arash. 

O sujeito que envelhece prefigura a morte — a tua morte —, e há uma imagem que se vai reiterado e que suspende um instante dilacerado no abandono: o vazio no branco de um braço estendido no lençol amarrotado. 

Lampedusa é também a sinédoque do “arquipélago instável dos mortos”. Assim como Tonito, nome próprio da delapidação da natureza do ser, o seu massacre emcontinuum, a redução até ao nada, pelo cerco da família (como Adrash). Tonito na banheira de sangue e água: “Os miúdos gritam de longe: paneleiro, paneleiro. O seu afastamento sufoca. O sol bate-te nas costas”, eis o fundo do desamparo.

Configurações da vítima, diferentes metonímias, e sobre elas pairando uma nuvem de sombras espessa, letal, tecida em várias direcções. Tal nuvem ou sombra emana de uma teia armada por interconexões contíguas. Não totalmente sobreponíveis, daí as linhas de força dos textos irem diferindo — traçando diagonais, interceptando, consumando o fim e o crescendo do texto, numa vasta alegoria da morte. Há no entanto dois pilares dominantes, duas imagens especialmente significativas, cada uma delas um espelho caleidoscópico: a invasão, o movimento, o avanço e a fuga, a retracção, o recuo, a guerra e a devastação, a queda, o caos. E a morte, sempre formigando. Comece-se pelo lento mas irreversível avanço sem reparação da besta: a larva, a lagarta, a lesma, largando passo a passo uma baba cujo visco brilha, trepando à luz que a revela, sob os holofotes vigilantes: “pela janela, na pequena deformação do vidro, a larva devora, a cada movimento da minha cabeça, uma larva desperta da sua hibernação, e recomeça/ come e defeca/ come e defeca.” 

No interstício de cada interrupção cabe um mundo, avança o fim, deslizando em cortejo, larva a larva, morte a morte, morto a morto. 

O bestiário do autor deveria ser analisado: o cão, ambíguo e sempre presente, que se enrola debaixo da mesa, aos pés do velho trémulo sentado na soleira da casa cuja porta abre e fecha, e não constitui um abrigo a não ser do intruso (não há abrigo, há o progresso para a morte). Da Europa, do sujeito que (a) enuncia. E há o cão que devora os ossos do crânio ao pastor. E há ainda o cão que reaparece a mancar, intermitentemente no sonho. E a vespa, animal que pica e que, ao contrário da abelha, não morre da picada. antes vai malignamente ao encontro do canto dos velhos na sala fumacenta de um bar. E a canção do lobo, HorstWesselLied, o hino nazi. Rui Nunes sela com ela um pacto, e, à medida que a colisão se produz, o choque expande o próprio campo em que se produz, acelera uma linha de morte. Essa linha mapeia rotas sobre terrenos putrefactos, por isso os cogumelos aí vingam. Neles proliferam ainda os ossos, facas invertidas lançadas pelos muitos e cada vez mais mortos contra o esquecimento. Ossos que paralelamente indiciam o avanço do tempo, o desenho da magreza, sob a pele, o retrocesso da carne. 

O padrão do avanço, do movimento, é também preenchido pela viagem, pela excursão de escritores rio abaixo: o Reno e os seus castelos. Sob a batuta de Goebbels, na senda do horror: Pierre Drieu La Rochelle, Robert Brasillach, os colaboracionistas 

Como noutros textos de Rui Nunes, reconhece-se um enquadramento. Modernizado, ainda assim: “Já não descem o Reno os escritores (...), mas saem apressados de aviões, entram em mangas climatizadas, enchem corredores com as suas palavras, o mundo para eles não é mais do que uma página que lêem entre duas escalas (..), viajam de palestra em palestra, falam da fome e da guerra, bebem um uísque, expõem certezas d maliciosas dúvidas, traem-se uns aos outros, afinal já não há pátrias nem mátrias para trair, representam múltiplos poderes benevolentes desde que, poderes que passam de cara para cara, sempre os mesmos sob tantas caras, esta gente carrega uma antecipação, um funeral, um obituário, uma última vez na glória de um telejornal:/ tantos génios a sair da linha de montagem,/ génio a génio se faz um vazio.” Terrível este entendimento trágico do que se alinha à volta. A Europa da indiferença. Todos transparentes, todos iguais. A escrita do autor é cheia de atritos, a frase parte-se, a palavra faz-se e desfaz-se, insaciavelmente, enquanto Rui Nunes continuar a não poder não escrever — “não sei acabar: sei prolongar o massacre./ O meu. Repito. Repito? Porque qualquer repetição inicia/ um pequeno e fascinante desvio” (...). escrevo. E venci. Venci toda a gente que me disse: não escrevas essa palavra, não escrevas assim, escreve bem. Pára. E eu. Puta que os pariu.”

O que escreve não é nada solar. O seu ethos não é todavia engolido por um pessimismo que anestesia. Pelo contrário. A ira impera, a escrita é afirmativa, poderosa, por isso jubilatória, geradora de imagens belas e arrepiantes.


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