O que resta das histórias?

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A Mala Voadora estreia hoje no Citemor, em Montemor-o-Velho, Real/Show, um monólogo sobre personagens que nós criamos e que nos criaram a nós, de Ulisses à Barbie, com dois mil bibelots em cena

O que têm em comum Ulisses e a Barbie? E os dois mil "bibelots" que estão em cena? Que relação têm uns com os outros e connosco? O "Real/Show" que a Mala Voadora estreia hoje em Montemor-o-Velho, na recta final do Citemor, fala-nos de histórias que marcam o nosso imaginário, construídas a partir de personagens que nós criamos e que, a partir de certa altura, nos moldam também a nós. A Barbie, o Ulisses, o Pai-Natal, a Cinderela, estão lá todos os famosos.

No armazém onde tem lugar o espectáculo (o público é transportado para o local, o ponto de encontro é no Teatro Esther de Carvalho), apenas Jorge Andrade está em cena. Entre a luz e a sombra, diz-nos que "gostava de fazer". "Eu gostava de fazer, eu gostava de fazer, eu gostava de fazer". Três vezes, três intenções diferentes, uma concreta, outra utópica e outra desanimada. Depois, elas começam a aparecer, as personagens que na realidade nunca existiram e, no fundo, é como se existissem sempre. Vêm no discurso de Jorge Andrade.

O actor não encarna, porém, as ilustres invenções: fala sobre elas, mistura-as, baralha-as, num monólogo durante o qual também questiona a forma como nos influenciaram. Mais tarde, a luz mostra-nos dois mil "bibelots". "Como é que os 'bibelots' podem contar histórias sobre determinada cultura? Sobre uma pessoa? Os bibelots representam lugares, emoções, animais. Não são reais, mas representam algo. Como no caso das personagens. Nunca tendo existido de facto, têm uma repercussão no nosso quotidiano", diz Jorge Andrade.

Durante o espectáculo, um ou outro ambiente sonoro remetem-nos para as personagens. Quase nem era preciso, conhecemo-las de cor. O Bambi, o Batman... São 28. Citizen Kane, Fausto, Peter Pan, Betty Boop, Marlboro Man, James Bond, Drácula, Robin Hood, King Kong, Tarzan, Big Brother, a Barbie... que materializa os nossos sonhos de beleza, de magreza e de diversão. Nós inventamo-la, e ela? Continua a inventar-nos a nós?

Problematizam-se as influências que estas personagens tiveram - e continuam a ter - na nossa sociedade, no nosso dia-a-dia. "Ulisses. O estratagema foi tão influente que ainda hoje usamos a expressão cavalo de Tróia". "A qualquer viagem longa ou sinuosa chamamos uma Odisseia". Cinderela: "Uma das características sinistras da história é a de que as madrastas são malvadas. (...) Além disso, a Cinderela reforça a mentalidade passiva daqueles que aceitam o destino dominados enquanto esperam que forças místicas venham socorrê-los. (...) A Cinderela é patética, mas nós apaixonamo-nos pela ideia de que os mansos acabam por triunfar."

"Real/Show" pretende questionar o sentido de contar histórias hoje. A Mala Voadora anda atrás duma resposta: "No percurso interno da companhia, fazemos uma espécie de questionamento de como é que havemos de fazer espectáculos hoje? O que é que é isto das histórias? Contam-se com que objectivo? E o que é isso de veicular uma mensagem?", pergunta Jorge Andrade. Qual o papel do teatro quando conta essas histórias?

O espectáculo, que resultou de uma residência de criação em Montemor, conta com direcção e interpretação de Jorge Andrade, mas foi construído também por Anabela Almeida e Bruno Huca, que escreveram os textos, em conjunto com Jorge Andrade e a partir de "101 Most Influential People who Never Lived" (de Allan Lazar, Dan Karlan & Jeremy Salter), livro que ainda não está traduzido para português. A cenografia é de José Capela.

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