O que o trabalho diz de uma pessoa, de uma terra, de um povo

Após uma reflexão mais genérica sobre o trabalho, Labor #2 leva o Teatro do Vestido a seis municípios portugueses com o propósito de desenterrar diferentes realidades laborais. A primeira paragem desta História feita de pessoas concretas acontece a 29 de Abril, no Barreiro.

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Labor #2 inicia no Barreiro uma visita guiada a territórios míticos do trabalho em Portugal; seguem-se a Moita e Sesimbra JOÃO TUNA

As pessoas, as pessoas, as pessoas. Pelo meio, os factos históricos, claro, mas sem o peso das narrativas oficiais que dizem como foi (mesmo a quem esteve lá). No Teatro do Vestido revive-se através da memória alheia, por mais esburacada, arruinada ou enevoada que esteja. A História aqui, lá por se fazer com uma soma de agás minúsculos, lá por ser uma manta de pequenos relatos que não chegam às academias, não é coisa menor.

Nos “palcos” do Teatro do Vestido, ouve-se aquilo que fica à margem, ouve-se a memória que carregamos connosco mais do que num pesado volume de História ou numa desenrascada e anónima entrada da wikipédia. A História oficial não nos costuma dar conta dos indivíduos, não nos diz em que andava a cabeça da dona Olga ocupada durante as greves dos operários, não nos diz que João e Artur Rezende eram irmãos, ambos fotógrafos, cada um especializado em grupos de diferentes posses financeiras. A História entretém-se e distrai-se com a narrativa maior, a dos grandes movimentos sociais, e desinteressa-se amiúde daqueles que não protagonizaram nada.

“Embora os historiadores trabalhem por vezes sobre outras pequenas histórias”, diz Joana Craveiro, directora do Teatro do Vestido, “nós trabalhamos com a metodologia da História oral, que é uma História que privilegia a subjectividade dos sujeitos e o sujeito enquanto produtor de História. Não é aquela versão que se ensina na escola, mas uma História que é pessoal e que às vezes contém incorrecções factuais. O mais importante é a experiência da pessoa, a sua relação com aquele acontecimento.” Daí que a companhia tenha assentado arraiais por estes dias no Espaço Memória, arquivo municipal do Barreiro, localizado dentro das instalações da antiga Companhia União Fabril (CUF), um dos maiores complexos industriais da Europa durante boa parte do século XX. No Espaço Memória, por obra de uma equipa de arquivistas altamente empenhada em preservar o património local, descansa todo um valioso espólio de depoimentos orais e de arquivos pessoais que repetidamente salvam da destruição em casas deixadas ao abandono.

No meio de pastas com informação relativa a eleições legislativas ou presidenciais e a dezenas de dossiês de correspondência militar ou que documentam a actividade dos ferroviários no Barreiro, vai nascendo uma peça de teatro intitulada Labor #2, encomendada pela Artemrede ao Teatro do Vestido para ser apresentada em seis municípios diferentes – depois da estreia, a 29 e 30 Abril, segue para Moita (Maio) e Sesimbra (Junho), estando os restantes três ainda por confirmar –, com as devidas adaptações às especificidades de cada realidade laboral concreta. #2 porque Labor #1 se estreou em 2013 no Teatro Maria Matos, em Lisboa, partindo de uma reflexão mais genérica sobre o trabalho e as suas mudanças ao longo dos tempos, mas também sobre o seu lugar absolutamente central na definição de cada cidadão. “Desde cedo começámos a pensar no que ‘queríamos ser’ ou ‘aquilo em que queríamos trabalhar’”, escreve-se na apresentação do projecto. “A sociedade moderna, como a conhecemos, organizou-se e organiza-se em função do trabalho.” O que se faz define cada indivíduo perante o colectivo, cola-lhe uma etiqueta e arruma-o bem arrumadinho numa determinada prateleira da sociedade.

O passado da CUF será dos mais paradigmáticos que podem existir acerca desse lugar central ocupado pelo trabalho. Anunciada como “terra bela e próspera” durante um período em que a fome grassava de maneira generalizada e severa pelo país, a vila do Barreiro era um chamariz devido a uma CUF que era não apenas uma tábua de salvação, mas um exemplo claro de como o trabalho pode motivar fluxos migratórios, politização dos operários, fortalecimento de uma noção comunitária. Disso dá também conta Labor #2. “As redes que se tecem à volta de um acontecimento”, diz Joana Craveiro, “fazem com que nunca seja apenas sobre o acontecimento ou a problemática em específico. Somos levados a falar sobre coisas que podem não ter uma relação directa com a origem do projecto. De repente, no Labor #1, fazia sentido falar até de campanhas de alfabetização nas quais eram utilizadas metáforas do trabalho. Portanto, ainda muito cedo abandonei esses espartilhos e comecei a pensar neste projecto como algo que se vai construindo em vários capítulos, às vezes mais teóricos, outras vezes a lidar com coisas muito específicas como as lutas pelos direitos sociais. Se calhar daqui a 20 anos ainda estou a fazer espectáculos chamados Labor #15.”

Aludir a momentos como as importantes greves que se deram na vila operária do Barreiro, nomeadamente a de 1943, às portas da CUF, e cujas consequências alastrariam ao resto do país fazendo tremer o Estado Novo – “As greves de 43 são uma memória importantíssima do Barreiro”, sublinha-se em Labor #2, antes da reconstituição de uma carga policial –, funciona também para Joana Craveiro como lembrete de que o chavão “direitos dos trabalhadores” tem uma origem concreta, em pessoas concretas. “Falar em acabar com o feriado do 1º de Maio é atacar a memória da acção de uma série de pessoas que fez com que fosse possível celebrar essa data em liberdade.” Donde, falar do passado implica necessariamente falar do presente. Ou não soasse “Se não queres, vai-te embora que a gente põe cá outro” tão desse tempo quanto dos nossos dias.

A memória com luvas
Labor #2 inicia-se nas traseiras do Espaço Memória. Os actores chegam, escrevem o nome das suas personagens numa pequena ardósia e voltam-na para o público. Nomes próprios, apenas. Pessoas, sempre pessoas desde o primeiro segundo, cada uma a contar como chegou ali, ao Barreiro, num outro tempo, atraídas pela promessa de que “aqui encontram uma família”. Não só uma família, como uma comunidade perfeitamente equipada dentro dos muros da CUF, com segurança social própria, escola para os filhos, cuidados médicos, casa, comida e, depois da greve de 43, um posto da GNR para que o controlo repressivo fosse mais eficaz. E vemo-los também, aos actores, a chegarem de malas cheias (mais com esperanças numa vida digna do que com roupas e pertences) graças à ferrovia, a sentirem-se como os pioneiros dos westerns norte-americanos que haveriam de descobrir no cinema mais tarde.

No cinema da terra, fez furor há várias décadas o documentário Barreiro, realizado em 1928 por Artur Costa de Macedo, dedicado a vistas gerais da vila, mostrando a Sociedade de Instrução e Recreio Barreirense conhecida por Os Penicheiros, mais a sua banda filarmónica em passo de marcha, a saída do pessoal das fábricas da CUF ou os ateliers fotográficos dos irmãos Rezende. Mas também Alexandre, “o tipo mais popular do Barreiro”, ou os miúdos que atravessavam as ruas carregando cestas com almoço para os operários. Tudo isto é explicado a Joana Craveiro e à equipa de actores por Fernando Mota, responsável pelo Espaço Memória e um dos arquivistas que ajudaram a definir o rumo de Labor #2. “Ao chegarmos, começámos literalmente do zero”, relata Craveiro. “Não somos do Barreiro e demorámos alguns dias a perceber sobre o que estávamos a pesquisar, porque é muita coisa. Mas quando eles nos perguntaram ser queríamos ver umas fotografias, iniciou-se este diálogo. Depois, o Fernando e a Rosalina [Carmona] fizeram-nos visitas a espaços exteriores da CUF, realizámos uma espécie de arqueologia de reconstituição do espaço, e visitámos também locais de resistência, como o bairro dos ferroviários. Tem sido assim todos os dias.” As histórias acabam por vir ao seu encontro, cada entrevistado indica outros dois ou três com quem seria interessante falar e alguns deles, como um engenheiro esperantista, acabam por entrar na própria peça pela voz dos actores. No caso, como relator do esperanto como “língua de resistência” que os operários aprendiam à mesa de café.

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O novo projecto do Teatro do Vestido continua e afunila a experiência iniciada em 2013 no Teatro Maria Matos, em Lisboa João Tuna

Montado como um percurso que se faz a pé e de autocarro, Labor #2 começa no Espaço Memória, atravessa o arquivo, avança até um antigo ringue de hóquei em patins, segue depois até ao imponente mausoléu com os restos mortais de Alfredo da Silva, o industrial por trás do império da CUF, e vai prosseguindo até aos portões onde se concentraram os protestos da greve de 43. Sempre numa perspectiva de resgatar a História das mãos dos especialistas. Não por não lhes pertencer, mas por dizer respeito a todos. Joana Craveiro recupera a dissolução da Comissão do Livro Negro do Regime Fascista, decretada por Cavaco Silva em 1991, e abordada no anterior Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas: “Ao dissolver a Comissão, Cavaco Silva diz em decreto-lei que isso deve ser deixado para os especialistas. E o que dizemos nesse espectáculo é que a partir daí a memória tornou-se assunto de especialistas.”

Labor #2 é uma reivindicação do contrário, de uma História que pode e deve ser recuperada e ressuscitada de arquivos em que apenas entram investigadores. Por isso mesmo, o Teatro do Vestido calça as luvas como fazem os arquivistas que homenageia, por tratarem da memória.

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