O que é que a Grécia tem?

Tem a geografia, tem a História, tem a língua, tem a memória, tem o património – todos singulares. E também tem o Syriza, ou seja outra excepcionalidade que pode ser mais um mito fundador para a Europa. Está tudo em O Sobressalto Grego, de Pedro Caldeira Rodrigues.

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Os cinco anos de crise, resgates e austeridade produziram uma nova singularidade grega: o Syriza ARIS MESSINIS/ AFP

A Grécia desperta paixões. Turísticas e culturais. Políticas e pessoais. À esquerda e à direita. Contra e a favor. Toda a gente tem uma opinião sobre a Grécia. Ou várias. Afinal, o que é que a Grécia tem?

O jornalista Pedro Caldeira Rodrigues (n. 1958) acaba de publicar um livro – O Sobressalto Grego – que poderá ser de grande e oportuna utilidade para quem estiver interessado em responder à pergunta. O título refere-se, é claro, à vitória do Syriza nas eleições legislativas gregas de 25 de Janeiro passado, “caso inédito” no continente europeu no pós-guerra (a vitória eleitoral de um “partido da esquerda radical”), singularidade que “sobressaltou a Europa e espantou o mundo”. O livro, porém, expande, multiplica e aprofunda esta singularidade, repertoriando os “contínuos sobressaltos da história da Grécia”, fazendo a crónica do “caso grego”.

Obra de um jornalista com formação académica em História, O Sobressalto Grego poderá definir-se como um ensaio histórico-jornalístico. Parte das reportagens e entrevistas que tem feito na Grécia desde 2011 ao serviço da agência noticiosa Lusa, mas contextualiza-as com uma desenvolta introdução à História do país, devidamente assessorada por mapas e quadros e por uma pormenorizada e utilíssima cronologia.  “Encarei este livro também como uma missão jornalística”, diz Pedro Caldeira Rodrigues, “porque a nobreza do jornalismo está na reportagem, está em tentarmos transmitir às pessoas o que vimos, e ouvimos, e sentimos, sobretudo em situações que não são fáceis de descortinar e de descodificar”. Recorda um livro de “um grande jornalista sueco” chamado Stig Dagerman, um livro lido “há uns anos”. Intitulado Outono Alemão, relata as condições de vida da população alemã após o final da Segunda Guerra Mundial: “São reportagens absolutamente brutais, que fazem lembrar o [filme] Alemanha, Ano Zero, do Rossellini. É um extraordinário trabalho de reportagem. E esse tipo de jornalismo é importante, porque dá uma dimensão da realidade mais abrangente e mais equilibrada do que a abordagem um pouco simplificada que a maior parte dos media faz agora, por exemplo, em relação à Grécia. Essa é uma missão do jornalismo que é importante cultivar e registar. Foi esse pequeno esforço, que tem com certeza imensas imperfeições, que eu tentei fazer”.

O interesse profissional do jornalista pelos Balcãs começou no início da década de 1990 quando, então ao serviço do PÚBLICO, fez a cobertura da guerra na ex-Jugoslávia, mas a paixão pessoal pela Grécia começara muito antes, “no terceiro ano do liceu”, ao iniciar o estudo da Antiguidade Clássica. Depois veio a “primeira impressão” física do país, numa viagem de comboio em Agosto de 1977. Hoje, a Grécia de Pedro Caldeira Rodrigues é “bela, sábia, profunda, surpreendente”, tal como se lê na dedicatória do livro. “Tenho muitas amigas e muitos amigos gregos, e fui muitas vezes à Grécia, que é um país muito, muito particular: por causa da língua, da memória, da história, das ilhas, das montanhas, da gastronomia, da música…” – justifica-se. O fascínio, até mesmo em Portugal, onde a cultura grega contemporânea “é muito pouco conhecida”, não é incomum: “Lembro-me da Natália Correia, da Sophia de Mello Breyner, da Hélia Correia, mais recentemente… É uma atracção por uma espécie de Grécia mítica, uma Grécia que está na origem da Europa, que está na origem da democracia, uma Grécia onde o convívio entre o homem e a natureza, entre o homem e os deuses, era algo perfeito, embora saibamos não ser bem assim… E depois há a delicadeza da arte grega clássica, essa delicadeza das formas, das estátuas, dos monumentos; mesmo hoje em dia, quando vamos à Grécia, quando vamos, por exemplo, a Delfos, ou quando subimos ao Partenon, ou quando vamos a uma ilha do mar Egeu… Porque, e também é importante dizer isto, a Grécia é um país com uma natureza absolutamente deslumbrante.”

Precisamente, a geografia, que a coloca na fronteira sempre instável entre o Ocidente e o Oriente, é um dos factores que definem a singularidade que a Grécia tem. A religião ortodoxa (“Sendo um país de religião ortodoxa [o primeiro admitido na União Europeia, em 1981], a Grécia sempre teve relações muito próximas com outros países ortodoxos e em particular com a Rússia; não esqueçamos que os primeiros exércitos que tentam libertar a Grécia a partir de 1820/1821 partem das comunidades gregas de Odessa”) e a tardia libertação do domínio otomano (no século XIX, quando a luta pela independência e o Romantismo europeu fazem renascer o mito da Grécia mítica) serão outros dois. “Quer o Renascimento, quer a Revolução Industrial são absolutamente residuais em toda a região dos Balcãs devido à presença otomana. Houve regiões da Grécia – Salónica, por exemplo – que só se libertaram da soberania otomana há cem anos”, recorda Pedro Caldeira Rodrigues. Que considera haver três momentos traumáticos na história da Grécia no século XX: “A catástrofe da Ásia Menor [a derrota na guerra greco-turca de 1920-22, com o consequente êxodo dos gregos da Anatólia e a perda definitiva de Esmirna], a Segunda Guerra Mundial, com a ocupação alemã e a posterior guerra civil [terminada em 1949], e a ditadura dos coronéis [1967-1974]. São acontecimentos essenciais para se perceber a Grécia de hoje e estão permanentemente na memória das pessoas; em todas as famílias há alguém que ainda viveu um desses acontecimentos ou que deles tem memória. Tenho vários amigos gregos que me disseram que os pais, que viveram a guerra civil, se recusavam a falar disso, por ter sido uma coisa tão traumatizante e tão violenta. A reconciliação nacional só foi feita com o Andreas Papandreou em 1981, quando o PASOK ganhou as eleições pela primeira vez.” Em O Sobressalto Grego afirma-se, por seu lado, que “perto de um terço dos gregos têm pais ou avós que foram forçados a deixar a Turquia na década de 1920”.

O caso Tsipras
A mais recente singularidade do caso grego chama-se Syriza, uma manta de retalhos das várias esquerdas que, em Janeiro passado, foi capaz de captar votos à esquerda, ao centro e à direita, falhando por pouco a maioria absoluta, consequência política mais imediata e evidente dos cinco anos de “crise da dívida”, dos “resgates internacionais” e da “austeridade”, e que começa agora, com a recentíssima cisão da sua ala mais esquerdista, a refazer-se e a recentrar-se. E dentro desta singularidade há uma outra: Alexis Tsipras. O seu pedido de demissão do cargo de primeiro-ministro, na semana passada, “foi uma nova jogada de antecipação, à semelhança do que já tinha feito com o referendo [realizado em Julho passado].” E como, talvez “paradoxalmente”, as sondagens “continuam a dar-lhe uma grande popularidade”, não é improvável que, uma vez homogeneizado e “pacificado” o Syriza, Tsipras venha a conseguir, “atendendo à especificidade do sistema eleitoral grego”, uma maioria absoluta em próximas eleições.

Entretanto, Pedro Caldeira Rodrigues releva uma questão que lhe “parece fundamental: independentemente de o acordo [imposto a Tsipras pelos credores da Grécia] poder ser considerado uma derrota do Syriza, caso o partido volte a vencer as eleições e se houver uma reestruturação da dívida, isso terá de ser considerado pelo menos uma meia vitória para o Syriza.” Para o Syriza ou para Tsipras? Comenta o autor de O Sobressalto Grego: “Exactamente… O próprio referendo de 5 de Julho foi, aliás, um plebiscito à popularidade de Tsipras, do qual ele saiu claramente reforçado politicamente. Conseguiu provocar logo a demissão do principal dirigente da oposição, Antonis Samaras, e no dia seguinte a demissão de Varoufakis [do cargo de ministro das Finanças] que era considerado pelos credores o grande obstáculo ao acordo. Foram vitórias pessoais de Tsipras e que ele vai tentar prolongar e reforçar agora com esta nova jogada política."

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Pedro Caldeira Rodrigues dedica-se aos Balcãs desde os anos da guerra na ex-Jugoslávia PEDRO MARTINHO

Tal como a Grécia, tal como o Syriza, Tsipras é uma excepcionalidade, insiste Pedro Caldeira Rodrigues: "Foi o primeiro-ministro grego mais novo dos últimos 150 anos e é o político mais popular da Grécia, pelo menos desde a restauração da democracia em 1974, a seguir ao Andreas Papandreou, que foi o fundador do PASOK e que era uma personagem mítica da esquerda grega. O que de facto Tsipras está a pedir, ao pedir novas eleições, é um novo plebiscito, um voto de confiança como primeiro-ministro, para poder continuar a defender a dignidade da Grécia; não há aqui só uma componente ideológica, há também uma componente nacional ou nacionalista, e isso tem muito que ver com o percurso tortuoso e doloroso que a Grécia teve no século XX e com as constantes ingerências externas no país, que são muito caras e importantes para a memória colectiva da população grega. A questão é saber se o Syriza de Tsipras – agora já podemos dizer assim, o Syriza de Tsipras  conseguirá uma maioria absoluta nas próximas eleições.”

Se assim for, estaremos a assistir ao nascimento de uma nova “dinastia” partidária, seguindo uma muito peculiar singularidade da política grega? Responde o jornalista Pedro Caldeira Rodrigues: “A vitória do Syriza veio romper exactamente com essas dinastias político-partidárias. O avô e o pai do antigo primeiro-ministro George Papandreou, que se demitiu em 2011, já tinham sido também primeiros-ministros da Grécia; o mesmo acontecia na Nova Democracia com os Karamanlis ou com os Mitsotakis… Mas essa tradição dinástica na política grega foi uma coisa com a qual o Syriza tentou romper. Eram caras novas, não usavam gravata… O que não quer dizer…”

Qual será o próximo sobressalto grego?

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