O que é que a baiana tem? Barba e bigode tem

Reproduction, da húngara Eszter Salamon, foi recriada em Salvador, com bailarinas brasileiras expondo os seus corpos aos olhares desejantes de todos.

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Reproduction, remontagem da coreografia da húngara Eszter Salamon Tiago Lima
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Não foi preciso esperar muito para que a letra de Dorival Caymmi sobre o que a baiana tem começasse a surgir nos comentários do público que se reuniu no Instituto Feminino de Cultura, no centro de Salvador, na noite de sexta-feira. Após a segunda apresentação de Reproduction no IC8 – Interação e Conectividade, a remontagem da húngara Eszter Salamon de uma criação sua de 2004, agora com bailarinas brasileiras, essa baiana tinha barba, bigode e nalguns casos até um enchumaço visível no entrepernas, tornando impossível distinguir onde começava o homem e acabava a mulher. “Não sei se tenho uma namorada ou um namorado”, reagiu José, que vive com uma das intérpretes. “E não sei se aquele homem que ela apresenta não serei eu. Isso assusta-me.”

Reproduction opera a esse nível ao mostrar a passagem das bailarinas para drag kings, ou seja, a sua transformação em homens. Mas não é só isso, pois, ao baralhar fronteiras de género e de forma, reconstrói as regras do próprio desejo e expõe a culpa que nele possa existir. Umas noites antes, Isaura, namorada de Arthur, dizia, ainda em período de ensaios, que observava os homens e descobria que os seus movimentos eram mais femininos do que imaginava. Mas revelava também, em conversa informal durante um jantar com vários amigos, que se tinha percebido muito menos masculina do que achava.

Já tínhamos visto há cerca de uma semana, na encenação que Marcio Meirelles fez da única peça de teatro que o realizador Glauber Rocha escreveu, Jango, a entrada de rompante de uma Carmen Miranda que punha em causa essa imagem erótica e típica da baiana. A denúncia de Glauber Rocha inscrevia-se, naturalmente, num processo de emancipação feminino, mas Eszter Salamon, no gesto de convocar mulheres brasileiras para um jogo de adivinhação, vai mais longe. Aos corpos das mulheres, adicionam-se os corpos dos próprios espectadores, dispostos à volta de um palco, observando uns e todos ao mesmo tempo, e olhando, através das intérpretes, para as expressões dos outros espectadores. É, ao mesmo tempo, um trabalho sobre o desejo e um exercício de distanciação sobre a ética desse mesmo desejo que, dez anos depois da sua criação, expõe as dificuldades de emancipação da mulher numa sociedade sexista. Mas se antes o corpo das bailarinas europeias – branco, citadino – se sabia experimentado na gestão biopolítica das suas acções, agora, pela forte carga erótica com que o corpo da mulher brasileira tem de lidar na mais ínfima das acções quotidianas, há algo de diferente a passar-se. É como se o desejo pela mulher se transformasse numa espécie de culpa que é ancestral e quase genética.

Uma professora universitária, entusiasmada, dizia em conversa após o espectáculo que Reproduction deveria ser levado para a estação da Lapa e para o bairro da Mouraria, locais onde a presença das mulheres é condicionada pela submissão ao discurso masculino, por exemplo através da prostituição. A apresentação no IC8 trouxe ao de cima esse estereótipo que esta presente na canção de Dorival Caymmi e que se vê por todo o lado, com mulheres vestidas de baiana nas ruas a venderem beiju ou acarajé, a distribuirem fitas do Senhor do Bonfim ou, simplesmente, a deixarem-se fotografar ao lado dos turistas. Mulheres-objecto apenas com corpo e sem identidade própria.

No programa do espectáculo, as reflexões sobre a exposição do corpo são, também, reflexões sobre o próprio olhar de quem vê esse corpo: “A coreografia mostra de uma forma muito brilhante, digamos de maneira delicadamente provocadora, as demarcações dos regimes do olhar. Esse trabalho abre uma reflexão sobre como nós constituímos corpos apenas por percebê-los de uma certa maneira, gerando corpos flutuantes, que não podem ser fixos a uma única identidade."

 “Nunca beijei uma mulher até este trabalho”, confessava uma das bailarinas, “nem sabia por onde começar”. Na apresentação do festival, os programadores falavam de um convite a “mergulhar no desejo” procurando representá-lo. Diziam ainda que esse processo de exposição não era mais do que “um processo artístico em construção”. E podemos admitir que era um processo feito em colectivo, num gesto de democratização desse mesmo desejo.

Num festival como o IC8, em que a presença do desejo se tornou estruturante, objectos coreográficos como Reproduction ensaiam outras formas de o explorar. Numa cidade como Salvador, onde o sexo e o erotismo se indiferenciam numa fronteira difusa, os corpos das bailarinas são o mais amplo e generoso campo de experimentação da dificuldade de conviver com essa realidade.

 
O crítico está em Salvador a convite do IC8

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