O que dizer às balas alojadas na cabeça

A peça de Rabih Mroué, como outras deste Alkantara Festival, expõe tanto os limites como a potência da representação verbal.

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Fisicamente m cena, e presente também através do vídeo, Yasser Mroué Bernhard Mueller/Sommerszene
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Fisicamente m cena, e também presente através do vídeo, Yasser Mroué Bernhard Mueller/Sommerszene
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Em cena, Rabih Mroué; presente através do vídeo, o seu irmão, Yasser Bernhard Mueller/Sommerszene
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Em cena, Rabih Mroué; presente através do vídeo, o seu irmão, Yasser Bernhard Mueller/Sommerszene

Seria tão absurdo ter a pretensão de classificar com estrelinhas o trabalho de Yasser Mroué, irmão do artista libanês Rabih Mroué, dada a intimidade com que dá o seu testemunho em palco nesta performance, que não resta mais nada ao crítico senão repetir o autêntico bordão de Beatriz Costa: “Dou cinco estrelas, porque não posso dar mais!”

Yasser começa por dizer que não é ele que está em causa em Riding on a Cloud, o que é real, se acreditarmos que apenas vemos uma das suas facetas. Mas o final, pelo contrário (quando é reproduzido o diálogo entre os dois irmãos que deu origem à peça), revela que ele é ele mesmo. Yasser é talvez o mais ele-mesmo que se possa ser, com e sem a lesão que marca o antes e depois da sua história de vida, precisamente porque tudo está em cena ao mesmo tempo, agora. Yasser foi baleado por um atirador furtivo em Beirute, em 1987, tendo ficado lesionado para sempre e passado a sofrer de afasia, a perda da capacidade de compreender ou criar discurso”, como definida pelo próprio. A partir deste ponto, a peça procura formato e movimento, bem como a avaliação de ambos. O caso pessoal ganha foros de caso colectivo, e o testemunho passa a ser emblemático de uma época. Tal como a bala atravessou o crânio deixando estilhaços alojados no cérebro, a Guerra do Líbano vinha de trás e continua até hoje, ainda que por outros meios — neste caso, teatrais. É do interesse do leitor e espectador de teatro suspender no ar as estrelas, ainda que temporariamente, dando-as todas de uma vez.

o é que esta performance não possa ser equiparada a outros espectáculos. A personagem real tem como antecedente ficcional célebre pelo menos uma personagem dramática: o recruta Woyzeck, inventado por Büchner no início do século XIX, a partir de casos reais, e que mal se conseguia exprimir, quanto mais relatar o cerco de que era vítima. Mas a dificuldade em falar dos tempos que vivemos atravessa esta e outras peças de um modo tão lancinante, dando à cena uma vida verdadeira, que Riding on a Cloud supera, apesar da simplicidade aparente, o jornalismo, a história, a ficção e, ainda mais, a crítica.  

Alguns dos espectáculos apresentados no Alkantara nos últimos dias têm aliás rimas entre si, uma das quais é a presença de um homem na mesa de trabalho, a escrever, a ler ou a dizer em voz alta as palavras que ele crê deverem ser proferidas em situações de urgência. Além deste Riding on a Cloud, também This is how we die, de Christopher Brett Bailey, e Sur les traces de Dinozord, de Faustin Linyekula, mostram essa figura de um narrador actuante que, ao fim e ao cabo, expõe tanto os limites como a potência da representação verbal, mas não só: mostra, sobretudo, a ambivalência do acto de representar. Bailey é e não é ele mesmo; Dinozord está e não está presente; Yasser tem e não tem uma bala na cabeça. Esta rima alastra ao espectáculo de abertura do festival, E se elas fossem para Moscou?, de Christiane Jatahy (a partir de As Três Irmãs, de Tchékhov), onde as narradoras são as próprias actrizes e a mesa de trabalho é todo o teatro, desde o palco onde se dispõe o set de filmagens até à tela que separa e une esse mesmo palco à respectiva plateia. A essa figura junta-se, em E se elas fossem para Moscou?, a imagem (verbal) do impasse perpétuo na prancha de mergulho, condição semelhante à da bala que não sai da cabeça de Yasser. Os trabalhos apresentados no festival convidam o espectador a olhá-los de fora e por dentro ao mesmo tempo, fazendo valer essa experiência de duplicidade para reconstituir os momentos perdidos para sempre, de modo a, digo eu, tornar possível a historicidade e a acção política, num mundo em que constantemente nos dizem que está tudo feito, tudo pronto, só nos resta aceitar o que vem por aí.<_o3a_p>

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