O Porto saiu à rua para ouvir a música do agora

Capicua, B Fachada e Ermo foram alguns dos nomes que se destacaram na quarta edição do NOS em D’Bandada. Uma cidade superlotada para participar num festival que funcionou como radiografia bastante completa da nova música portuguesa.

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Foram 62 concertos em 19 palcos: a 4.ª edição da D’Bandada foi a maior até hoje RICARDO CASTELO\NFACTOS

Dez da noite, uma Praça dos Leões a transbordar. Já não há rua nas redondezas que não esteja entupida, já não há ninguém que não esteja rendido à raça de Capicua – e é tão bom ver a rapper portuense e a sua companheira de guerrilha Marta (M7) terem a cidade aos seus pés num dos palcos principais deste NOS em D’Bandada (o terceiro de Capicua) com aquele rap feminista e combativo, que tanto destila sonhos e memórias felizes como a podridão do ser humano (e do país).

Ana Matos fala de um palco tomado por mulheres (às 23.30 era a vez de Manuela Azevedo, dos Clã, se juntar à Orquestra de Jazz de Matosinhos) e dedica o concerto “às mulheres reais, não às mitológicas” que também povoam o seu último disco, Sereia Louca: ouvimos a mulher do norte rabugenta e genuína de Mão Pesada e a mulher que carrega o peso do patriarcado e colonialismo de A Mulher do Cacilheiro. Houve ainda tempo para trazer a palco dois convidados que participam no último disco: a angolana Aline Frazão, em Lupa, e Miguel Ferreira, em Vayorken.

A 4ª edição da D’Bandada, que a organização considera ter sido a maior de sempre (62 concertos em 19 palcos), arrancou à 16h com concertos simultâneos de Old Jerusalem, Ricardo Ribeiro e a Orquestra Barroca da Casa da Música, mas antes disso já o Jardim da Cordoaria estava cheio de gente à espera de Miguel Araújo - o músico dos Azeitonas tinha dois concertos móveis no eléctrico que era suposto partir dali às 16h15 e às 17h30.

Por causa do atraso do primeiro concerto, que só começou às 17h (mas fez o povo feliz na mesma), saltamos de uma paragem do eléctrico para o Maus Hábitos, onde às 18h começavam os Ermo, duo bracarense que protagonizou um dos momentos mais especiais do festival: a electrónica rastejante e lânguida, quase torturante, de Bernardo Barbosa amplifica as palavras desencantadas (e de uma lírica invejável) de António Costa – que numa voz grave e apocalíptica, qual reverendo gótico, grita “Vão dizendo em toda a parte o meu país morreu”, uma ligeira adaptação de um verso de A Morte Saiu à Rua, de José Afonso.

Fim da tarde e as filas à porta dos espaços fechados começavam a ser visão habitual até ao fim da noite. Pelas 20h muita gente começava a dirigir-se ao Passeio das Virtudes, que já se tornou a casa de fados ao ar livre do D’Bandada: no ano passado com o furacão Gisela João, este ano com Ricardo Ribeiro, uma das vozes mais portentosas da canção de Lisboa. Brincalhão e falador, entre declamações de quadras de José Régio e António Aleixo, Ricardo Ribeiro mostrou por que é capaz como poucos de levar o fado a várias paragens: da Mouraria ao Alentejo, do Bairro Alto às arábias.

Escolhas difíceis
A partir das 21h, gerir o calendário tornava-se tarefa difícil. E injusta: apesar de este ser um festival de escolhas, havia demasiados nomes obrigatórios à mesma hora. É inevitável, portanto, cada pessoa fazer um roteiro diferente e sempre imperfeito. Depois de Ricardo Ribeiro ainda deu tempo, num sprint, para abanar a anca com o indie-rap dos Monster Jinx na Praça dos Poveiros, que foi o palco do hip-hop portuense com Dealema e Mind da Gap; e, a meio de Capicua, ir ao Coreto espreitar Duquesa, projecto em que Nuno Rodrigues troca a electricidade suja e ébria dos The Glockenwise por canções dulcíficas e soalheiras para ouvir de cabeça encostada ao ombro do nosso mais que tudo.

Rumo ao Ateneu, e deixando infelizmente para trás nomes como Bruno Pernadas, Ghuna X, HHY & The Macumbas e Gala Drop, ainda deu para apanhar a recta final do concerto do guitarrista Norberto Lobo. Depois, B Fachada transformou o salão vitoriano e a rebentar pelas costuras do Ateneu num autêntico bailarico a suar em bica com as chulas, os fandangos e os funanás roliços do último disco, o terceiro homónimo, que marcou o regresso de um ano sabático.

As saudades eram muitas: não faltava gente a cantar de uma ponta à outra as novas canções, feitas ao teclado e a partir de samples de música portuguesa pré e pós-revolucionária. E não é descabido colocar B Fachada na linhagem de Vitorino e de José Afonso com versos deste calibre: “a polícia fica louca/ quando a canção cabe na boca” (Dá Mais Música à Bófia, que sampla o primeiro) ou “segues alerta/ ficas à escuta/ e o teu rebanho cala-se contigo/ tresanda a festa / tresanda a ditadura” (Pifarinho, com um sample do segundo).

Com o festival a chegar ao fim, às duas da manhã a Baixa do Porto continuava intransitável, com a Rua Cândido dos Reis totalmente lotada para dançar com DJ Kitten. No Armazém do Chá, os DJs e produtores Maboku e Lilocox, da Príncipe Discos (editora que resgata e divulga a música electrónica feita nos subúrbios e nos guetos de Lisboa), faziam magia com as suas superlativas reconstruções polirrítmicas do tarraxo, da batida e do kuduro. Um vocabulário musical único, e a forma perfeita de fechar esta edição do D’Bandada, que conseguiu ser uma radiografia bastante completa da música que se anda a fazer no Portugal de agora.  

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