O penoso fardo do autor de sucesso

É possível ler este livro da americana Meg Wolitzer como um libelo feminista na forma de um desabafo cáustico, por parte de uma mulher que não teve vida própria devido à quase escravatura (mental, psicológica) a que o marido a sujeitou.

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Meg Wolitzer, uma escritora traída pela sua própria vulnerabilidade Harry Pluviose/Retna Ltd.

Aos sessenta e tal anos, Joan Castleman é uma mulher revoltada contra um mundo que inclui o seu célebre marido, três filhos problemáticos e uma penosa frustração, longamente arrastada e enquistada em decepção, raiva e desprezo. Joan Castleman é uma bomba-relógio emocional, prestes a explodir, na confortável e silenciosa cabine de primeira classe do voo para Helsínquia, ao lado do já obeso e encanecido Joe Castleman, uma sombra do jovem judeu musculado e electrizante que a seduziu há três décadas. Joe, o escritor de quem todos falam, o homem adorado pelos leitores (e, principalmente, pelas leitoras) vai a caminho de uma cidade e de um país que lhe entregará, entre festejos e honrarias, um prestigiado prémio que representa o culminar da sua leonina carreira.

Joan revive as vicissitudes do seu casamento, o lugar que sempre ocupou como a “cara-metade” de Joe, por todos reconhecida como o baluarte, o esteio, a coluna vertebral que ampara um homem com um ego descomunal e um egoísmo monstruoso. O triunfal caminho do escritor idolatrado e louvado em todas as línguas foi traçado, feito e refeito, à custa da sempre atenta, devotada e sacrificada Joan. Naquele momento de apoteose, enquanto o anafado e indulgente autor se faz valer do seu charme inconfundível — embora envelhecido e gasto continua, graças à sua fama, a manter um estatuto especial — Joan decide que, logo a seguir à entrega do prémio, lhe comunicará que vai deixá-lo. Num devaneio que se prolonga nos dias gélidos da capital escandinava, passa em revista a sua vida ao lado daquele homem, que preencheu por completo o seu tempo e o seu espaço.

Joe era um jovem professor casado e com uma filha bebé quando Joan, sua aluna de Literatura no prestigiado e muito Wasp Smith College, se deixa seduzir pelo seu encanto másculo e pelo seu carisma. Joan, que também aspira a ser uma autora publicada, (mas receosa da etiqueta de escritora exibicionista e “histérica”), embarca num romance tempestuoso com Joe que deixa a mulher e a filha para se juntar à jovem, loira e inteligente aluna que abandona a universidade para o seguir na vida boémia de Greenwich Village, nos efervescentes anos cinquenta. Apesar de, no auge da paixão, ter experimentado uma profunda decepção com um conto que Joe lhe mostra e que considera péssimo, Joan decide acreditar piamente no génio do seu futuro marido e dedicar-se em pleno à sua carreira. O seu sacrifício — que inclui uma disponibilidade total para as infidelidades de Joe, para as festas de intelectuais, para um tratamento condescendente por parte dos “grandes homens” e para uma solidariedade distante das outras “esposas” — será amplamente justificado, embora não da forma que ela desejaria.

É possível ler este livro da americana Meg Wolitzer — nascida em 1959, apoiante de VIDA, (Women in Literary Arts), uma organização de apoio a escritoras — como um libelo feminista na forma de um desabafo cáustico, por parte de uma mulher que não teve vida própria devido à quase escravatura (mental, psicológica) a que o marido a sujeitou. É verdade que a acção começa nos anos cinquenta, quando era ainda comum a sujeição feminina perante a “glória” masculina. No romance, são particularmente interessantes as descrições das reuniões, em Nova Iorque, dos “autores célebres” e das suas “mulherzinhas”, separados em grupos bem definidos, que arriscavam a transgressão e as aventuras extra-conjugais (no caso dos homens, evidentemente), enquanto as ferozes e leais esposas os protegiam, os mimavam, lhes perdoavam os desvios e continuavam heroicamente ao seu lado. Joan vai mais longe, embarcando com Joe em “visitas de estudo” a prostitutas, strippers, grupos de partners swinging e antros de droga numa cidade onde a revolução sexual dos anos sessenta estava em marcha. Mais tarde Joan recriminar-se-á por não ter resistido, por ter seguido sempre os ditames do marido num tempo supostamente descomplexado e livre mas em que imperava uma mal disfarçada e violenta misoginia.

Em A Mulher, o desenlace da acção é decepcionante e previsível e Wolitzer, cujo interesse principal reside na denúncia da desigualdade de género no mundo editorial e da escrita, nunca abandona o tom recriminatório e auto-vitimizador que acompanha todas as decisões de Joan. Ela, o perfeito espelho de um homem narcisista, inseguro e superficial que se alimenta da fama e se delicia com o seu proveito, nunca rejeita, por seu turno, o papel que lhe é imposto nem tão pouco as regalias, luxos e mordomias da “mulher do autor famoso”. Por ele descura os filhos, aliena amizades e afectos, anula-se e permite todas as humilhações.

Meg Wolitzer tem explorado estes temas, o que lhe valeu a colaboração com a argumentista e realizadora de sofisticados psico-dramas, Nora Ephron, em dois filmes, adaptados dos seus romances, This is Your Life, 1988 e Surrender, Dorothy, 1998. A Mulher, também obedece às directrizes de uma obra feita para ser transposta para o cinema, com as suas personagens estereotipadas, os lugares descritos em detalhe — Nova Iorque, Helsínquia — e a utilização de elementos da cultura Pop: quartos sufocantes e hotéis esquálidos no período pré-sucesso, hotéis e salas de recepções, apartamentos e estúdios hipster quando Joe alcança a desejada fama. Resta acrescentar que a comparação que os críticos têm feito entre as personagens de Joan e a de Esther, a heroína de A Campânula de Vidro de Sylvia Plath são, no mínimo, forçadas. É verdade que, em ambos os romances, existe uma mulher enclausurada numa situação que se arrasta, que a sufoca e contra a qual não consegue lutar. Mas Plath viveu intensamente esses neuróticos anos cinquenta e a sua heroína percorre uma senda de instabilidade mental e tentativa de renascimento que não existe na personagem de Meg Wolitzer, uma escritora deste tempo que é traída pela sua própria vulnerabilidade.

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