O Património Arqueológico nacional: recurso estratégico do futuro

A defesa do maior recurso estratégico que qualquer País possui, a sua memória colectiva, materializada nos seus sítios, monumentos, conjuntos patrimoniais e colecções museológicas, deve ser obra de todos.

Assinala-se este ano o duplo centenário do nascimento de D. Fernando II, rei mecenas do património e das artes, protector e presidente honorário da Associação dos Arqueólogos Portugueses (AAP), e bem assim os duzentos e dez anos de nascimento e cento e vinte anos da morte do fundador da AAP, Joaquim Possidónio Narciso da Silva. Residindo em ambas estas personalidades uma das raízes mais fecundas do patrimonialismo português, entende a AAP ser oportuno registar o testemunho da sua avaliação do estado actual do património arqueológico nacional, e da própria actividade arqueológica.

A matriz patrimonialista constitui um dos traços distintivos da AAP, desde a origem e sistematicamente ao longo do mais de século e meio de existência. Neste longo período, a Arqueologia e, mais ainda, as ciências do património cultural, evoluíram de fases de entrega abnegada às causas cívicas, tendo por base o mais estrito amadorismo, para outras em que sobrelevam indicadores de consistência teórica e metodológica, dando também origem à emergência de verdadeiros grupos profissionais, hoje predominantemente compostos por trabalhadores em regime liberal ou assalariados, desenvolvendo estes muitas vezes relações contratuais situadas no limite da legalidade e, não raro, indignas dos requisitos exigíveis ao exercício da Arqueologia, senão mesmo à condição humana. Esta alteração, envolveu ainda uma profundíssima “crise de crescimento”, traduzida no aumento exponencial de intervenções de campo, de que resultam colecções acumuladas em armazéns a que dificilmente se pode chamar reservas, as quais correm sérios riscos de destruição física. Por outro lado, os sítios arqueológicos, eles próprios, encontram-se em condições de grande degradação.

É urgente reerguer a estrutura do Estado e a participação cidadã nas políticas do património.

No plano consultivo, o actual autodesignado Conselho Nacional de Cultura (CNC), de cuja Secção de Património Arqueológico e Arqueológico foram excluídas quase todas as entidades independentes e representativas dos cidadãos, constitui uma verdadeira excrescência democrática que importa corrigir imediatamente, retomando o longo fio da história, desde a Monarquia à Democracia inicial, onde nomeadamente a AAP sempre esteve representada nos órgãos consultivos dos governos.

No plano executivo, depois de toda uma fase de procura crescente de qualificação dos serviços do Estado, assistiu-se a um evidente desinvestimento na capacidade operacional dos departamentos de tutela da Arqueologia, o qual atinge níveis tais que tornam praticamente inviável o cumprimento das mais elementares disposições de monitorização e intervenção cautelar ou correctiva que são exigidas ao Estado, enquanto representante do bem comum.

No quadro desta caracterização, a AAP considera que se torna prioritária a tomada das seguintes medidas, no âmbito do que bem se poderia designar como plano de salvaguarda do património e de relançamento da actividade arqueológica nacional:

– Elaboração de um Plano Estratégico para o Desenvolvimento da Arqueologia, no qual se realize um levantamento dos recursos instalados nos diferentes departamentos do Estado, estabelecendo entre todos sinergias cooperativas, tendo como prioridade a salvaguarda das colecções acumuladas nos últimos anos e a preservação dos sítios postos a descoberto e em risco eminente de destruição.

– Abertura pela Fundação para a Ciência e Tecnologia de Linhas de Financiamento para a investigação aplicada em Arqueologia, desenvolvendo privilegiadamente a sua dimensão patrimonial.

– Instalação de uma Rede de Reservas Arqueológicas, dotadas das condições de salvaguarda de colecções e documentação, acessíveis aos investigadores e preferencialmente anexas a museus. Esta necessidade faz-se especialmente sentir no que respeita aos materiais provenientes dos projectos de grande impacte territorial.

Democratização das políticas patrimoniais e arqueológicas, através da criação de um Conselho Superior de Arqueologia ou da reformulação profunda das secções atinentes (património arquitectónico e arqueológicos, museus, conservação e restauro e património imaterial) do Conselho Nacional de Cultura, respeitando os princípios básicos da sua representatividade, qualificação e independência.

Reconfiguração do aparelho de Estado da Cultura, dotando-o de capacidade operacional, o que implicará forçosamente a opção por soluções orgânicas ágeis e dotadas dos quadros de pessoal necessários ao bom desempenho das suas missões.

– Neste particular, atribuição de prioridade ao único bem arqueológico português classificado como Património Mundial pela UNESCO, a arte rupestre do Vale do Rio Côa, para o qual o modelo fundacional pode continuar a constituir a melhor opção, se verdadeiramente assumido pelo Estado e suportado em práticas de gestão inovadoras e audaciosas, decorrentes do preenchimento da sua direcção máxima através de concurso público internacional.

Finalmente, o esforço de reposicionamento e requalificação que é exigível ao Estado, deve também ser seguido pela própria sociedade em geral e, dentro dela, pelos seus segmentos mais acreditados para a defesa cívica e intervenção profissional nos diferentes domínios do vasto campo do Património Cultural nacional. Ciente da sua responsabilidade associativa, também nestes domínios, a AAP, que constituiu recentemente, por decisão da sua Assembleia Geral, uma Comissão de Arqueologia Profissional, exorta todos os intervenientes, sociedades científicas, associações patrimonialistas, empresas, sindicatos e profissionais em geral a juntarem esforços no sentido de promoverem e respeitarem escrupulosamente todas as convenções, cartas e demais tratados internacionais relevantes, bem como os códigos éticos e legislação laboral aplicável.

A defesa do maior recurso estratégico que qualquer País possui, a sua memória colectiva, materializada nos seus sítios, monumentos, conjuntos patrimoniais e colecções museológicas, deve ser obra de todos. Essa é a responsabilidade que devemos assumir perante o futuro, cumprindo as nossas responsabilidades presentes, no respeito pelas gerações que passaram e nos permitiram ser o que somos.

Direcção da Associação dos Arqueólogos Portugueses

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