O passado e o presente em duas guitarras

Filho da Mãe e Jibóia ilustraram em Vila do Conde uma história índia com um século em cima. Jim Jarmusch teria ficado orgulhoso.

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Jibóia Joana Cardoso
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Filho da Mãe Leonor Cardoso
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In the Land of the Head Hunters

Talvez não fosse essa a intenção original, mas houve um “fantasma” a pairar sobre o terceiro filme-concerto do Curtas Vila do Conde 2014, onde Rui Carvalho aliás Filho da Mãe, e Óscar Silva, aliás Jibóia, musicaram In the Land of the Head Hunters (1914) de Edward S. Curtis.

O “fantasma” tem um de dois nomes. Um poderia ser Jim Jarmusch. O outro Neil Young. Em qualquer caso, a referência era claramente Homem Morto, o western desconstruído do realizador americano para o qual o músico compôs a banda-sonora em guitarra solo improvisada. Primeiro, porque este foi um filme-concerto muito Jarmuschiano, a começar pelo lado “fora de horas” que as sessões Stereo têm (arrancando sempre depois da meia-noite), perfeito para as texturas oceânicas e hipnóticas do trabalho de guitarra de Carvalho e Silva, recorrendo repetidamente a pedais de efeitos para construir envolventes ondulações sónicas.

Depois, porque sobreposta às imagens que o lendário etnógrafo e fotógrafo americano Edward S. Curtis registou junto de uma tribo índia canadiana no princípio do século XX, a música criou uma espécie de surreal transe xamânico. In the Land of the Head Hunters, estreado faz agora precisamente um século, sobrevive hoje muito incompleto e truncado, a partir de uma única cópia sobrevivente em mau estado – a versão exibida corresponde ao restauro de 2008 da Milestone que procura, na medida do possível, recompor o original preenchendo as lacunas com fotogramas de rodagem e intertítulos.

Mas é precisamente a essa noção de filme perdido no tempo, de um passado irrecuperável ou de uma memória fugazmente recordada, que a música de Filho da Mãe e Jibóia veio emprestar uma sedutora pungência e uma modernidade paradoxalmente intemporal. Entre o purismo americano de um John Fahey ou de um Leo Kottke e a angularidade europeia de um Michael Brook ou de um Phil Manzanera, o que se ouviu na noite de quinta-feira no Teatro Municipal foi um contínuo sonoro que ajudou a projectar no presente o fantasma de um passado que já não volta mais. E foi muito, muito bonito.  
 
Crítico de cinema

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