O passado colectivo jamais será vencido

Começa na Suíça que Portugal queria ser quando fosse grande, acaba no país que sobrou de uma ditadura, uma guerra, uma revolução e uma “normalização” democrática. Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas, do Teatro do Vestido, é o passado a fazer-se presente para a geração que só chegou no fim da festa, pá, e que 40 anos depois decide ficar acordada até tarde a falar sobre esse e outros assuntos.

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Uma actriz, quatro horas e meia de espectáculo: Joana Craveiro levanta sozinha em palco mais de 50 anos de vida em Portugal JOÃO TUNA
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Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas começou com perguntas como esta: quando é que a revolução acabou? JOÃO TUNA

Duas malas à porta – uma verde, outra vermelha, para que não possamos dizer que não fomos avisados: nas quatro horas e meia que se seguem, um país inteiro vai sair do armário –, e o que é que se leva para uma viagem destas?

Uma intimação da PIDE, ao cuidado de Laurentina da Conceição Silva, para prestar declarações na “repartição” da Rua do Heroísmo às 15h do dia 25 de Abril de 1946. Um livro proibido de Pamela Moore, Chocolates ao Pequeno-Almoço, que na verdade não era sobre culinária mas sobre o despertar sexual de uma mulher. Um disco do Movimento Nacional Feminino que os soldados portugueses ouviram em Angola e Moçambique no Natal de 1961. As sucessivas cassetes em que um retornado descreve o país que o obrigou a ir e o país que o obrigou a voltar – uma guerra de libertação, uma revolução e uma independência depois. Cravos nas espingardas, pastéis de bacalhau, um copo de vinho. Os panfletos em que o MRPP deseja “longa vida, muito longa vida ao camarada Mao Tsé-Tung”. O 1,49% de Otelo nas presidenciais de 1980. Uma fotografia da escola primária no tempo em que Portugal queria ser como a Suíça quando fosse grande (antes de decidir limitar-se a fazer duas malas, uma verde, outra vermelha, e a emigrar).

Isto é o passado, e tem sido duro edificar sobre ele o Portugal futuro. Tão duro que mais de três décadas depois Portugal continua a ser do tempo da canção de 20 minutos com que José Mário Branco enterrou um país (um país então entregue aos cabrões do FMI, entre outros filhos da puta) aos 37 anos – mais ou menos a idade com que Joana Craveiro começou a coleccionar os objectos que esta quinta-feira, dia 13, e até ao próximo domingo saem dos seus caixotes para que a actriz, encenadora e dramaturga do Teatro do Vestido edifique sobre eles, atrás de um portão da Rua do Século, em Lisboa, Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas – sete palestras performativas sobre a ditadura, a revolução e o PREC. É um museu pessoal, porque é ela a miúda recortada contra os Alpes suíços na fotografia que os alunos do Externato Grão Vasco foram fazer ao estúdio da avenida nesse ano em que, terminada a festa, pá, Otelo teve 1,49% dos votos, Ramalho Eanes foi reeleito e Portugal voltou àquilo que na verdade nunca tinha deixado de ser – “um país complexado, mais ou menos como agora, só que sem nada para culpar a não ser a revolução” –, e é ela, sozinha, que levanta metade de um século da vida de um país ao longo de quatro horas e meia (com intervalo para pastéis de bacalhau e um ou dois copos de vinho). Mas também é um museu colectivo, apoiado nos abundantes materiais bibliográficos e nas dezenas de entrevistas com que, ao longo dos últimos três anos, Joana Craveiro se dispôs a fazer uma reconstituição “quase detectivesca” de uma boa parte do século XX português – incluindo pessoas comuns que nunca tinham falado e que, mais do que “personagens reais” de um espectáculo de teatro se transformam aqui em protagonistas da História que foram fazendo enquanto, lá fora, uma ditadura, uma guerra, uma revolução e uma “normalização” democrática lhes caíam em cima, às vezes obrigando-as a irem-se verdadeiramente abaixo, outras nem por isso.

Certamente não é uma História tão perfeita como a da Suíça – e ainda bem.

 

Contem-nos como foi

Resultado de uma extensa (e para sempre inacabada) pesquisa “histórica, política e afectiva” sobre as “omissões, revisões e rasuras” que afectam e empobrecem a memória recente do país, Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas reúne finalmente as sete palestras performativas sobre o Estado Novo, o 25 de Abril e o Processo Revolucionário Em Curso (PREC) em que Joana Craveiro trabalha há vários anos – para chegar a este espectáculo que, com a estreia no Negócio, cumpre, mas não esgota, a sua missão (“Esta investigação continua de forma a tornar o invisível visível”, lê-se contra uma parede no final das quatro horas e meia de vaivém entre o passado e o presente), e também para chegar à tese com que concluirá o doutoramento sobre transmissão da memória política em Portugal na Universidade de Roehampton, em Londres.

Foi, tem sido, uma longa viagem – uma viagem que começou com uma pergunta incómoda que Joana, como muitos dos que só nasceram no fim da festa e fazem parte da chamada “geração da pós-memória”, acredita já ter idade para fazer, de igual para igual, aos que então eram adultos, mesmo que para isso seja preciso ficar acordada até muito tarde, ou mesmo passar algumas noites sem dormir. “A crise pôs o Teatro do Vestido a pensar muito sobre como chegámos até aqui – e sobre as explicações simplistas, muitas delas remontando ao 25 de Abril e ao PREC, que se vulgarizaram acerca de como chegámos até aqui. Por todas as razões, incluindo razões pessoais, tinha muita vontade de desmontar esse discurso. Muita vontade de perguntar porque é que a ditadura fascista em Portugal foi uma das mais longas do mundo, por exemplo, e porque é só falamos do que falamos quando falamos da revolução, que é um período com altos e baixos, claro, mas absolutamente ímpar na Europa – e sobretudo muita, muita vontade de perguntar de que é que nunca falamos”, diz ao Ípsilon.

Nesse sentido, as sete palestras que até domingo apresenta no Negócio configuram um museu alternativo dos cerca de 50 anos que decorreram entre a instauração do Estado Novo e o fim da revolução (outra boa pergunta: quando é que ela realmente acabou?). Assim está escrito no programa de Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas: “Como uma lição de História que não se aprende em nenhuma disciplina que conheçamos – e talvez por isso mesmo estejamos a construir este espectáculo. Por nunca o termos podido aprender mesmo quando pedimos que nos ensinassem, que nos contassem como as coisas se tinham ‘realmente’ passado.” Dos Pequenos Actos de Resistência na Livraria Ulmeiro, ali mesmo ao fundo da rua onde passou toda a infância em Benfica, ao Português Entrecortado da revolução que Adelino Gomes fez na rádio para quem não pôde fazê-la na rua (por estar longe ou por não saber, como Salgueiro Maia, onde ficava o Quartel do Carmo), da história de uma família de retornados que encontrou intacta num conjunto de cassetes que ninguém já tinha coragem de ouvir aos souvenirs chineses que a mãe (“Ela é que foi maoísta…”) acumulou em casa nos anos em que a revolução ainda não tinha acabado (a mesma casa onde, “entre 1969 e 1974 se reuniu clandestinamente um grupo que talvez tenha sido o MRPP”), das fichas dos prisioneiros torturados pela PIDE às listas dos livros que estiveram proibidos, Joana Craveiro atravessa as várias pequenas histórias que fazem a História do país em que nasceu, cresceu e quer continuar a viver (e ainda abre um parêntesis para falar da Guerra Colonial, que há-de fechar noutra altura).

Também foi assim que as coisas se passaram.

 

Dez milhões de histórias

No limite, Um Museu Vivo de Memórias Pequenas e Esquecidas é um espectáculo interminável porque há dez milhões de portugueses – cada um com uma história para contar sobre como chegou até aqui, cada um com o seu museu vivo de memórias herdadas ou vividas, o seu património de livros revolucionários sobre a Bolívia ou o Chile que de repente começam a ocupar demasiado espaço na estante, o seu espólio de fotografias de manifestações na Avenida dos Aliados ou na Fonte Luminosa, o seu ADN em parte comum ao tio-avô que foi fascista ou àquele primo próximo das FP25. Este é o museu vivo de Joana Craveiro, no sentido em que também reflecte um inquérito familiar: “Quis investigar dentro da minha própria família porque havia muitas coisas que até hoje não sabia e porque a transmissão da memória no contexto familiar é determinante neste processo de assimilação do passado”, dizia há uns meses ao Ípsilon quando ainda só ia a meio deste processo.

Agora que chegou ao fim (pelo menos de uma primeira parte: quer continuar a produzir obras para este museu e eventualmente até instalar o material que recolheu e que “é muito valioso” num espaço físico), acrescenta que este espectáculo só fica realmente completo se quem o vier ver “ficar até ao fim e depois ainda quiser falar sobre isso”: “Para mim é determinante que o Museu tenha esse lado participado e vivo do teatro – talvez se possa dizer que isso é porque sou nostálgica desse tempo de todas as discussões e manifestações que não vivi, mas de facto interessa-me muito que este objecto interfira com as pessoas e as ponha a falar. Se isso acontecer – e sei que é difícil porque é um espectáculo desafiante do ponto de vista da duração, da interpretação, do volume de informação –, uma parte da missão do Museu estará cumprida.” Outra parte da missão, admite, já está inscrita no próprio espectáculo, sobretudo pela forma inclusiva como foi construído: “O Museu é meu, mas também é das pessoas que nunca tinham tido uma voz e que eu quis ouvir.” Resistentes, presos políticos, retornados, historiadores, cineastas – mas também vizinhos, colegas da escola, amigos dos pais, pessoas da família, ainda que com omissões, porque, como em todas as famílias, certos segredos persistem (“A minha história pessoal também está ligada a Tete, mas não é uma coisa que eu possa contar aqui hoje”).

É uma pergunta que já lhe puseram, nas palestras que foi fazendo em Portugal e no estrangeiro para testar o formato e a estrutura do conjunto que agora estreia: porque é que ela, que não estava lá, tem legitimidade para quebrar o silêncio sobre alguns assuntos? “Sou pós-geração, não vivi nada disto em primeira mão – mas tenho uma ligação com este passado. Comecei por perguntar-me se conseguiria encontrar em mim e à minha volta esse legado – e encontrei, está em todo o lado. Entretanto, passaram 40 anos e é altura de questionar quem é que em Portugal têm sido os donos da memória – a geração dos meus pais desiludiu-me muito e desiludiu-me muitas vezes… Vamos falar sobre isso, temos direito a falar sobre isso, temos direito até a rir-nos disso. Portanto sim, sinto-me legitimada não só para falar sobre a transmissão da memória política em Portugal como também para ser eu própria agente dessa transmissão através desta performance. Que não é uma versão acabada da História mas a compilação de várias histórias (incluindo a minha) que não têm lugar na narrativa oficial e que eu uso com rigor e com respeito mas também com liberdade – liberdade ideológica, liberdade interpretativa… E, já agora, a liberdade da ficção.”

Também não podemos dizer que não fomos avisados: este país é o que existe, mas também é o que aqui foi inventado.  

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