O pântano dos nossos sonhos

Um centro de artes com vista para um pântano – e cujo guru (para não lhe chamarmos director artístico) é uma toupeira gigante. Pois: inverosímil como um sonho estranho, e com o mesmo poder de enfeitiçamento. O novo espectáculo de Philippe Quesne, Swamp Club, chega amanhã ao Porto.

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Nelson Garrido
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Pode parecer estranho pôr isto assim por escrito, e logo a abrir um texto, mas sabemos exactamente com o que é que vamos sonhar na próxima noite.

Não é coisa que aconteça frequentemente, a não ser quando Philippe Quesne (Paris, 1970), o artista francês que começou a fazer cenários para espectáculos e acabou a fazer espectáculos para cenários, está a caminho – e é exactamente esse o caso, porque é já amanhã que o mais recente episódio do seu grande ciclo sobre a nossa presença no mundo (sim, um programa grandioso, que vai do Big Bang ao apocalipse) chega ao Teatro Municipal Rivoli, no Porto. Portanto: na próxima noite vamos sonhar com um pântano, um pântano onde de repente aparece, vinda do nada, uma estrutura de vidro sobre estacas que afinal é um centro de artes com condições incríveis e que está aberto a artistas nacionais e estrangeiros. A parte em que é de facto um sonho, dos que não queremos que acabem, é aquela em que o centro está construído em cima de uma mina de ouro, e portanto nunca haverá dramas de financiamento como os que atacam os centros de artes verdadeiros (pelo menos os que conhecemos da vida real). A parte em que se torna um pesadelo é quando a toupeira gigante que por ali paira como um director artístico um pouco inacessível que não convém muito perturbar – ou como um guru, na mais misteriosa acepção da palavra, mas esta parte não chegamos a perceber muito bem… – se sente indisposta e subitamente a viabilidade de todo aquele ecossistema parece ameaçada, um pouco como o nosso maravilhoso e oh tão frágil planeta.

Swamp Club, o espectáculo com que vamos sonhar acordados amanhã no Rivoli, é só isto – ou tudo isto, se atendermos ao facto de que a pessoa que o sonhou se chama Philippe Quesne e costuma fazer maravilhas (mas maravilhas daquelas de restaurar a fé no sobrenatural, ou, o que é mais inverosímil ainda, de nos fazer acreditar em canções dos Scorpions) com materiais tão mínimos e tão pobres quanto os faróis acesos de um Citroën AX, uns insufláveis de hipermercado e uma máquina de fumo, como vimos com estes mesmos olhos que a terra há-de comer em L’Effet de Serge e La Mélancolie des Dragons, respectivamente.

Sim, Philippe Quesne é rapaz para remexer no bolso e tirar de lá uma Disneylândia inteira, com dragões verdadeiros e neve mais branca do que na Islândia – uma espécie de MacGyver das artes performativas, já que depois daquela avassaladora versão para flauta e guitarra acústica do à partida não-reabilitável Still loving you ficou provado que é precisamente quando o nível das referências anda um pouco lá por baixo, e agora acaba mesmo de bater no fundo, que os milagres acontecem. Já passaram seis anos desde que passeou o seu Citroën AX e os seus dragões – dragões verdadeiros! – pela Culturgest, mas Swamp Club, o lugar a que entretanto chegou com o colectivo de artistas que formam o Vivarium Studio, obedece ao mesmo tipo de regras e ao mesmo tipo de liberdades poéticas. Tanto que o que então disse ao PÚBLICO continua a ser verdade, ainda que entretanto haja coisas que ele poderia acrescentar, como o seu cada vez mais pessimista olhar sobre a depredação do planeta e a certeza de que já não há muito a fazer, a não ser teatro, para evitar a catástrofe. De volta a 2009, então, ainda que estas palavras também se apliquem ao pântano que ele encontrou em 2013: “É mágico perceber que aquelas criaturas negras e inquietantes que parecem respirar como seres vivos, que parecem ser dragões de verdade, são de plástico. Mas nós podemos levantar o tapete branco que faz de neve e continuar a acreditar que é neve. O público é cúmplice do fabrico dos nossos espectáculos, porque mostramos como os fazemos, mas isso não nos impede, nem a nós nem aos espectadores, de acreditar neles.”

Leia-se “toupeira gigante” onde antes se lia “dragões”, leia-se “bola amarela que faz de ouro” onde antes se lia “tapete branco que faz de neve”: bem-vindos a Swamp Club. O que se segue – exactamente por esta ordem, como se lê no letreiro luminoso à entrada do centro de artes dos nossos sonhos mais pantanosos – é burocraticamente realista (gravação do Quarteto de Cordas nº8 de Shostakovich; reunião organizacional sobre o estúdio de som, com apresentação de modelos 3D; acolhimento aos novos residentes; ensaio do quarteto de cordas; visita guiada; cocktail de boas-vindas; sauna; o encontro com a equipa internacional), e ainda assim continuamos a falar disto como se o que Philippe Quesne tivesse para contar fosse um conto de fadas. Não apenas por causa da toupeira, ou das suas unhas, “brilhantes e reluzentes”, mas por causa da mensagem (Still loving you, MacGyver, e agora um espectáculo com mensagem: continuamos a bater no fundo): tal como os outros, este espectáculo do Vivarium Studio tem coisas a dizer, e não só sobre a viabilidade da criação artística em tempos difíceis até para a mera sobrevivência. Tem, precisamente (e isto agora vai mesmo parecer piroso, mais piroso ainda do que uma canção dos Scorpions), coisas a dizer sobre as escassas hipóteses que ainda temos de sobreviver.

Formas de luta
Para lá da fábula aparente sobre um centro de artes perfeito (aquele que vem com a sua própria mina de ouro, fantasia que Quesne admite ser uma forma de “idealismo”), Swamp Club é ao mesmo tempo tão megalómano e tão minimalista quanto o que está encriptado nas linhas anteriores: uma comunidade, uma ameaça exterior, o que é que fazemos agora? Era uma pergunta que vinha do espectáculo anterior, justa ou injustamente chamado Big Bang (e também apresentado pela Culturgest, em 2012), e não era uma pergunta sobre o futuro dos artistas: era uma pergunta sobre o futuro das pessoas.

Para cumprir a regra do Vivarium Studio, cujos espectáculos se sucedem em efeito-dominó (cada nova criação começa onde a anterior terminou), Swamp Club tinha mesmo de ser sobre um oásis no meio de um pântano. Philippe Quesne, agora em 2015: “O espectáculo anterior abordava a nossa relação com o fim do mundo e com o apocalipse nuclear. Acabava numa ilhota num lago, numa espécie de mundo flutuante. Pensei que Swamp Club teria de mostrar como uma comunidade se reconstrói depois do fim do mundo, e como reconquista um território de liberdade, de independência, num ambiente hostil”, diz ao Ípsilon. Não foge à metáfora, ainda que as suas criações sejam o contrário de épicas (e no entanto…): “Claro que plantar uma comunidade num pântano, um lugar altamente instável, tem um enorme potencial metafórico. Mas acho que nesse aspecto Swamp Club está exactamente no mesmo lugar de todos os nossos anteriores espectáculos, que são sempre sobre uma comunidade que vive com ou apesar da ameaça, em terreno difícil.”

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Martin Argyroglo

Para esse efeito, o da sobrevivência, Philippe Quesne dá a cada novo recém-chegado ao centro de artes de Swamp Club – artistas franceses, islandeses, polacos, como aqueles que se cruzaram de facto, fora da ficção, com o Vivarium Studio – um auricular para poder comunicar e um arco para pescar ou caçar. E ainda há, porque como dissemos este sonho pode a qualquer momento transformar-se num pesadelo, um bunker enterrado a cinco mil metros de profundidade, último recurso para verdadeiras situações de emergência. Não parece naïf, é mesmo naïf: “Acho que é bom que permaneçamos ingénuos como pessoas. O mundo contemporâneo já nos faz sofrer suficientemente – as doenças, o desastre ecológico, a asfixia do capitalismo… –, vivemos o apocalipse na pele todos os dias. Então que ao menos a arte tenha alguma doçura – é isso que tento no meu trabalho. Se vires bem, todos os espectáculos do Vivarium Studio são acerca destes micro-mundos em que os artistas estão no coração da ameaça mas também estão no coração da liberdade poética, que é o derradeiro espaço possível para a utopia neste planeta”, argumenta o encenador. É um acto de defesa, admite, “porque a arte, e nesse sentido toda a ficção, está hoje ameaçada de extinção”, mas também é um acto de luta, uma espécie de militância pelo direito a continuar a construir mundos alternativos, mesmo que impraticáveis, literalmente à frente dos espectadores.

O que acontecerá a esta comunidade é coisa que só ficaremos a saber no espectáculo a seguir – e que começará neste bunker onde vemos os artistas de Swamp Club a recolher, porque a ameaça é real. “O próximo espectáculo começará aí, debaixo da terra. Será sobre uma comunidade a defender-se, a abrigar-se, a encontrar o seu lugar no subterrâneo e nas entranhas. E sim, eu sei que parece terrível, mas não sou catastrofista, e é por isso que como artista procuro reflectir sobre outras formas de sobrevivência, mesmo que experimentais. Aqui, em Swamp Club, quis mesmo tentar a utopia de nos relacionarmos. Mas em geral, nos nossos espectáculos, ainda que o mundo vá mesmo mal continua a haver entendimento, continua a haver doçura, continua a haver amor. Continua a haver uma família.”

É essa família que vemos a lutar contra “a ameaça” armada apenas de varapaus e fogos-de-artifício que seriam encantadores se não fossem desesperados; que vemos a salvar os veados e os patos do pântano, como fazemos às obras de arte quando as pomos num museu e esperamos que durem para sempre. Acreditamos neles, nos veados e nos patos de Swamp Club, mesmo sabendo que são embalsamados. Acreditamos porque é teatro, e porque esse é o espectáculo, com fogo-de-artifício e tudo, que os habitantes deste pântano encenam para se manterem vivos. Em tempos de crise sistémica (e não estamos a falar só da financeira), Philippe Quesne tem praticamente a certeza de que essa “é a única, é a última, liberdade que nos resta”.

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