O otium e o lazer

Um olhar atento a questões da sociologia da cultura já reparou certamente neste facto: os suplementos culturais dos jornais, ao contrário do que acontecia em tempos recuados, tendem actualmente a concentrar-se ao fim-de-semana, são concebidos para os programas de ocupação do tempo de lazer. Esta condição do lazer é hoje o mais poderoso centro de atracção de toda a cultura, fazendo do entretenimento o seu centro de gravidade. O tempo do lazer é aquele que resta depois do trabalho, vulgarmente chamado “tempo livre”, o que indica que ele se define não em si mesmo, mas em relação ao tempo de trabalho. Diferente do lazer é o ócio (no sentido do otium latino, não no sentido pejorativo que a palavra adquiriu). É do otium que nascem as artes, as letras e as ciências. O lazer é um tempo de recuperação e de preparação para o trabalho; ootium é o tempo da liberdade e não se deixa apropriar pela lógica mercantil dos tempos livres: como diz Jean-Claude Milner, linguista e filósofo francês, há um lazer-mercadoria (a que as férias estão de um modo geral submetidas, sejam elas passadas em regime de turismo low-cost ou no Club Méditerranée), mas não há um otium-mercadoria. Hoje, já quase ninguém tem o privilégio do otium. A burguesia proprietária que vivia dos rendimentos extraídos dos seus bens, típica do século XIX, foi desaparecendo ao longo do século XX e deu lugar à burguesia remunerada, sendo essa remuneração quase sempre sob a forma de salário. O salário da alta burguesia é evidentemente muito maior do que o salário fundamental ou mínimo dos assalariados em geral (pode mesmo ter, em relação a eles, uma grandeza colossal). A estes, o salário paga o repouso (e já foi uma grande conquista, que aliás está a retroceder); aos primeiros, o salário paga também o lazer. Jean-Claude Milner chamou a esta burguesia dos salários altíssimos burguesia do sursalaire, do sobressalário”. O sobressalário não está dependente da lei do mercado, da oferta e da procura. Trata-se de um salário arbitrário, isto é, dependente de uma arbitragem e de um preço políticos, e não do mercado. Um exemplo: o Lloyds Bank paga mais de uma dezena de milhões de libras, só em prémios e suplementos, ao seu CEO Horta Osório, como ficámos há dias a saber, não porque ele seja o único no mundo a conseguir a performance desejada (que, aliás, depende de uma equipa numerosíssima e não de uma só pessoa), mas porque convém ao Lloyds a operação publicitária que consiste em dizer ao mundo que tem a chefiá-lo um homem superpoderoso, e a medida do seu superpoder é evidentemente aferida pelo dinheiro que ganha. Esta burguesia do sobressalário raramente tem a possibilidade de converter o seu dinheiro em tempo (o que, do ponto de vista de um Mestre Eckhart ou das ordens monásticas da “altíssima pobreza”, era o mais elevado índice de miséria). Ela opõe-se assim, diz Milner, à burguesia do “sobretempo”, de que os professores universitários eram, até há pouco tempo, entre a burguesia assalariada, o exemplo mais evidente. É fácil perceber a diferente relação que uns e outros têm com as coisas da cultura: o professor tinha todo o tempo para usufruir da cultura, mas tinha o limite da sua fraca remuneração que não lhe permitia aceder a tudo; o burguês do sobressalário, esse, tem os meios para possuir e aceder a tudo, mas não tem tempo para usufruir de quase nada. E assim a cultura deslocou-se do otium para o lazer. É óbvio que só o otium concede tempo e disposição para ler Guerra e Paz. O lazer, na melhor das hipóteses, satisfaz-se com um item do top Fnac ou com os roteiros da “cultura para o fim-de-semana”.

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