O olho-mágico

Uma novela que é um esmerado exercício de escrita, por uma das vozes mais originais surgida nos últimos anos

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António Gregório, uma das vozes mais originais surgida na literatura portuguesa nos últimos anos

A abrir o prólogo da novela O Condómino, de António Gregório (n. 1970), podemos ler: “Era o dia da minha ressurreição e eu de avental pelo jazigo, quotidianíssimo soprando, espanando o pó que o tempo morto acumula sobre tudo, a lidar e a lidar e descrente no prodígio que se avizinhava ou nem isso, que a descrença nalguma coisa pede ao menos um pensamento a respeito e eu afizera-me tanto à minha morte (quantos anos levava já dela?) (…)”. Estas linhas iniciais podem levar o leitor a pensar que se trata de um texto que se inscreve na chamada “literatura fantástica”. Mas poucas páginas adiante apercebemo-nos que o “jazigo” a que o narrador se refere mais não é do que um normal apartamento de um prédio com uns quantos andares habitados por outros condóminos. O narrador está fechado em casa, “sepultado”, por sua própria vontade, e através do óculo da porta (que é blindada) – a que chama “olho-mágico” – vai assistindo aos movimentos pendulares dos vizinhos e de uns quantos visitantes que lhe passam diante do olhar espião. Ao longo da narrativa quase nada sabemos do que se passa no exterior do prédio, a não ser que se localiza numa rua frequentada por “carros de instrução” e onde bastas vezes acontecem acidentes rodoviários. “Ajudava também a passar o tempo os pequenos acidentes rodoviários – demasiado amiúdes para o meu entendimento: por que raio se batia tanto na nossa rua?”

Da história deste estranho misantropo, um verdadeiro “enterrado-vivo”, pouco sabemos, nem o nome nem a idade, nem como cumpre algumas tarefas essenciais à sobrevivência, tão pouco as razões que o levaram a cometer aquele acto absurdo; sabemos apenas que se mudou numa noite para aquele apartamento: “a mudança feita durante a madrugada: talvez o instinto condómino para a defesa da rotina os tenha alertado acerca de algum rumor inédito de movimento, mas fui lesto (tenho, de resto, tão poucas coisas) e quando a estranheza os levou a indagar já eu estava, como diria a dona Lurdes, a espirituosa, sepultado”. Desde então ele vai-se dedicando ao exercício do seu “meticuloso trabalho de existência” ao mesmo tempo que observa com alguma perversidade as actividades dos outros condóminos: “eu ali a ver, com os maus instintos do espectador de circo durante o número sem rede dos trapezistas”. Interessa-se sobre os gestos e a coreografia da Muda enquanto esta limpa as escadas, da sazonal visitante Beatriz (“anunciante do apocalipse”, “profissional da fé” e “pisteira de solidões como certos predadores de sangue fresco”), da vizinha dona Lurdes (que apelidou de jazigo o apartamento dele), ou ainda de outros condóminos não tão presentes no dia-a-dia.

O espaço central da acção (e uma vez que não há digressões exteriores a ele) está, obviamente, bastante confinado, com isso parecendo retirar hipóteses de profundidade à narrativa, mas esta redução espacial acaba por ter como contraponto uma atenção maior aos pormenores descritos criando no leitor um outro tipo de espaço, mais aberto a interpretações. Também o esmerado e criativo trabalho de António Gregório com a linguagem escrita vem, de alguma forma, servir também de complemento; e não é apenas o ritmo frásico ou o cuidado trabalho de escolha das palavras, é também a segurança de uma escrita que por vezes subverte normas acompanhando o narrador e a narrativa na sua aproximação, em tropeções, ao limite do absurdo, apesar de esta ficção ter a óbvia preocupação de construir uma realidade coerente.

O estranho acto deste misantropo que se “sepulta” vivo, não se percebendo se por um extremo exercício de solidão ou se por um mais obscuro motivo, causa desassossego e interrogação no leitor, o que é ainda mais acentuado nos momentos em que nos apercebemos de que está presente uma personagem desconhecida (que se entende ser o apoio exterior do “enterrado-vivo”), um “ouvinte” para quem a história parece estar a ser contada, e que de vez em quando dá achegas à narrativa.

O Condómino

 é o terceiro livro de António Gregório – os anteriores são 

Uma História de Desamor Treze Vezes

 (Âmbar, 2005) e 

American Scientist

 (Quasi, 2007), este último de poesia – e esta novela inscreve-o como uma das vozes mais originais surgida na literatura portuguesa nos últimos anos.

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