O novo espaço do Museu do Chiado “nunca foi pensado para ter a Colecção SEC em permanência”

Há mais de 20 anos que se espera pela ampliação do Museu Nacional de Arte Contemporânea. Esta quarta-feira é finalmente inaugurada, mas no meio de uma nuvem negra. As obras, essas, podem ser uma descoberta.

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Há dois homens numa grua a montar os telões que chamam a atenção para a nova entrada do Museu do Chiado. A carrinha que a transporta congela o trânsito nas ruas Capelo e Serpa Pinto e não há motorista ali parado que não pergunte por que razão há-de um museu provocar um engarrafamento quando ainda nem sequer tem a porta aberta. Não é um museu – é a extensão de um museu.

Terça-feira à tarde, véspera da inauguração da muito aguardada ampliação daquele que é o Museu Nacional de Arte Contemporânea, muito havia ainda a fazer. E não só na fachada. Lá dentro, no topo do primeiro lance de escadas colavam-se as letras que lhe servem de bilhete de identidade, no átrio montava-se a pequena loja e instalava-se o sistema de bilhética e lá em cima, nos 1600 metros quadrados do primeiro andar que agora servirão de galeria de exposições temporárias do museu, a cafeteria estava desabitada e nas paredes faltava ainda o pequeno texto que vai enquadrar a exposição Narrativa de uma Colecção – Arte Portuguesa na Colecção da Secretaria de Estado da Cultura (1960-1990), que abre esta quarta-feira no meio de uma intensa polémica que envolve a Secretaria de Estado da Cultura (SEC) e a Fundação de Serralves, e inclui a demissão de um director.

Uma polémica que vem lançar uma nuvem negra sobre aquele que deveria ser um “momento de festa”, defendeu o director-geral do Património Cultural, Nuno Vassallo e Silva, que tem a seu cargo os museus. “A Cultura está há mais de 20 anos à espera desta ampliação – se quisermos, até podemos dizer que está à espera desde que o museu veio para aqui [o Convento de S. Francisco], há mais de 100 anos –, consegue-se finalmente e toda a gente parece mais preocupado com a Colecção SEC, com despachos e demissões.”

Vassallo e Silva falava aos jornalistas ao início da tarde, na primeira sala do novo espaço que pertencia ao extinto Governo Civil de Lisboa e que foi cedida à Cultura no ano passado para que o museu pudesse crescer para os actuais 3000 metros quadrados (já vários executivos o tinham tentado desde meados da década de 1990). “Não vou voltar a comentar a demissão do Dr. David Santos […], e também não posso falar de uma colecção que já não está afecta à Direcção-Geral do Património Cultural [DGPC]”, disse, remetendo quaisquer perguntas sobre a revogação de despachos para a SEC.

Há apenas um ano e meio como director do Museu Nacional de Arte Contemporânea-Museu do Chiado (MNAC-MC), David Santos demitiu-se há precisamente uma semana, alegando “incompatibilidades insuperáveis” com a tutela. A decisão do historiador de arte surgiu na sequência de uma série de pressões em torno do destino a dar ao conjunto de mais de mil obras de arte contemporânea portuguesa reunida pelo Estado a partir de 1976 e conhecida como Colecção SEC. Este acervo, com obras de José Pedro Croft, Lourdes Castro, Álvaro Lapa, Paula Rego, Helena Almeida ou Ângelo de Sousa, particularmente importante no que toca à produção nacional nas décadas de 1960, 70 e 80, e disperso por várias entidades, foi entregue ao Museu do Chiado em Setembro de 2013 pelo actual secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier (esta medida só se tornou efectiva, no entanto, com um despacho publicado em Fevereiro do ano passado). O mesmo governante veio agora revogar a decisão de incorporar o referido conjunto no acervo deste museu que mostra a arte portuguesa desde meados do século XIX até hoje, com lacunas evidentes nas décadas que a Colecção SEC privilegia (o despacho de revogação aguarda ainda publicaçãomas o seu conteúdo tem efeitos imediatos).

As cerca de 70 obras que a partir de amanhã se poderão ver nas mais de 25 salas que compõem o novo espaço expositivo de chão e paredes brancas, com bonitos tectos de estuque trabalhado, fazem parte de uma parcela da colecção que está em depósito na Fundação de Serralves, no Porto, assim com as restantes 30 que, durante o próximo ano, trocarão de lugar com algumas das peças que agora integram o percurso de Narrativa de uma Colecção.

Sem interlocutores
Nas salas que parecem nascer do longo corredor, umas amplas e outras exíguas por manterem a área das celas originais do convento, há pinturas de Ângelo de Sousa (S/Título, 1986) e Álvaro Lapa (Museu I, 1984), de Julião Sarmento (Dias de Escuro e Luz VIII – dança) e Pedro Cabrita Reis (O Desejo do Eterno, 1984), mas também escultura de Rui Sanches (Natureza-Morta, 1984) e fotografia de Alberto Carneiro (A Floresta, 1978) e Helena Almeida (Desenho Habitado, 1977). Nalgumas das "celas" há apenas uma obra, o que cria um ambiente de grande intimidade. É difícil perceber que lógica assiste à montagem porque, na visita de ontem, não havia interlocutores que pudessem falar do programa expositivo nem textos de catálogo que o enquadrassem.

Ao demitir-se, David Santos, também co-comissário da exposição, impediu o uso do guião que para ela tinha construído com a co-comissária Adelaide Ginga, que também se afastou do projecto, e de todos os conteúdos que até então tinham sido produzidos, considerando-os trabalho autoral. Isto ajuda a explicar por que razão o que hoje se poderá ver foi montado com a colaboração de dois curadores que vieram de Serralves (Ricardo Nicolau e Marta Almeida, ontem ausentes) e porque é que, numa primeira fase, não haverá catálogo nem roteiro disponíveis para os visitantes.

Na nota que enviou para as redacções dando conta da inauguração, o assessor de imprensa de Barreto Xavier, João Póvoas, faz notar que Narrativa de uma Colecção resulta de uma colaboração entre a DGPC e a Fundação de Serralves, cujo presidente já manifestou por diversas vezes não estar disponível para ceder a título permanente as 550 obras da Colecção SEC que tem em depósito, de acordo com um protocolo, até 2027.

Os dois curadores de Serralves trabalharam a partir de um conjunto seleccionado pelos anteriores comissários, que fizeram a sua escolha com base na totalidade das obras que a colecção inclui e nas suas mais de mil fichas detalhadas, que constam de três pesados dossiers à guarda do Museu do Chiado.


Reformular o museu
O novo espaço, que não está ainda ligado ao anterior – para ver a exposição-mãe continua a ser preciso usar a entrada da Rua Serpa Pinto, embora o bilhete seja único e se mantenha nos 4,50 euros - e que duplica a área do MNAC-MC (fica com 3000 metros quadrados), “nunca foi pensado para ter a Colecção SEC em permanência”, defendeu o director-geral do património, perante as dúvidas quanto ao vínculo que, segundo o despacho de 2014 entretanto revogado, deveria estabelecer com o Chiado. Não era, então, suposto, que o conjunto fosse afectado ao museu e que este a partir dele fosse fazendo exposições temporárias para que a Colecção estivesse acessível ao público? “Não”, respondeu Vassallo e Silva ao PÚBLICO. “O despacho de Fevereiro de 2014 diz muito claramente que os protocolos existentes em relação à Colecção SEC [como o de Serralves] se mantêm todos.”

O que vai, então, o Chiado mostrar nas novas galerias daqui a um ano, quando a actual exposição terminar? Obras da Colecção SEC que não pertençam a Serralves? “Quando esta sair, vamos reformular completamente o programa expositivo do museu”, disse João Carlos Santos, arquitecto e subdirector geral do património, com o pelouro das finanças, que ontem fez grande parte da visita guiada aos jornalistas, na companhia de Vassallo e Silva e Samuel Rego, o outro subdirector-geral que está provisoriamente a substituir David Santos. “No fim do ano os dois espaços – este e o da colecção permanente - já estarão fisicamente ligados e deverá estar criada uma grande exposição a reforçar esta unidade”, explicou. Uma exposição que será ainda maior quando o museu puder ocupar mais 2000 metros quadrados do mesmo edifício, os que pertenciam à Polícia de Segurança Pública (PSP), algo que ainda não aconteceu por “falta de recursos”.

O actual projecto de readaptação das áreas onde esteve o Governo Civil, feito pelo arquitecto Paulo Freitas, resultou numa intervenção mínima que custou 300 mil euros e permitiu ali instalar também o serviço educativo e as oficinas de restauro do museu. Foi para “gastar o mínimo possível”, diz João Carlos Santos, que boa parte dos aparelhos de ar condicionado ficaram à vista e que não foi possível substituir o chão (numas salas é de madeira, noutras de tijoleira, ambas pintadas a branco).

“Aqui o que fiz, dado o orçamento, foi garantir que o espaço é homogéneo e neutro para que nele possa sobressair o que verdadeiramente interessa – as obras de arte”, acrescentou Paulo Freitas. A ampliação que se segue, para a área da PSP, terá um caderno de encargos completamente diferente e já não será feita, é claro, nesta legislatura. Mais ambiciosa, exigirá um concurso internacional, que a DGPC quer ver lançado “muito brevemente”, assegura Vassallo e Silva, assim como o do futuro director do MNAC-MC.

Tal como o novo Museu Nacional dos Coches, que abriu portas sem a museografia completa e sem boa parte dos espaços comerciais a funcionar, a ampliação do Museu do Chiado é hoje inaugurada sem estar verdadeiramente concluída. Não falamos da segunda fase da ampliação, mas da ligação ao acervo permanente, que deverá estar pronta até ao fim de Dezembro. Insistindo que o calendário das eleições não é o seu, Vassallo e Silva argumentou que “não fazia sentido continuar à espera quando já se esperou mais de 20 anos e estas obras não têm estado acessíveis ao público”.

Esta quarta-feira, às 18h30, artistas e agentes do sector cultural deverão concentrar-se frente à nova entrada do Museu do Chiado em sinal de protesto contra a forma como o processo que levou à demissão de David Santos foi conduzido pela tutela.

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