O negrume, o amor e a esperança de Kate Tempest

Everybody Down, o disco de estreia de Kate Tempest, poeta e dramaturga premiada, não é só um portento de hip-hop negro e industrial: é um olhar duríssimo sobre a sua geração na Inglaterra deste exacto momento. Mas no fim, no fim há só isto: amor, pessoas e esperança, tudo o que, diz ela, importa nesta vida.

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DAVID STEWERT

"Há monstros por todo o lado, de mamas empinadas, lábios molhados, cabeça atirada para trás, a berrarem para mostrar que existem": e com esta simples frase entramos de jorro no álbum de estreia de uma força da natureza chamada Kate Tempest, rapariga britânica de cabelo emaranhado quase cor-de-fogo cuja urgência ao rapar contrasta com o negrume e com a solidão das personagens destes dez temas.

Everybody Down, cujo primeiro verso traduzimos acima, não é (só) um disco de hip-hop e Tempest não é apenas uma MC a estrear-se: miss Kate Calvert, cujo nome artístico não podia ter sido mais bem escolhido, é uma poeta e dramaturga de 27 anos, vencedora do Ted Hughes Poetry Prize por Brand New Ancients, e o seu álbum de estreia não se limita às batidas e aos versos: é um romance em rima em que cada canção é um capítulo.

Começa-se com uma festa, descrita na primeira frase, e vista pelo seu lado mais cínico. Depois, seguimos as pessoas que lá surgem até ao fundo das suas pequenas dores, do seu isolamento, dos seus vícios. E no fim, no fim, diz-nos miss Tempest após quase uma hora de conversa ao telefone que deu vontade de a declarar património material da humanidade, no fim “há amor e esperança". "Tem de haver fucking love and hope, porque se não não estamos aqui a fazer nada."

“Aqui”, na vida. Porque Everybody Down está cheio de vida – a vida toda de Becky, Harry, Pete, modelos, passadores de droga, gente banal, os subúrbios. É a vida narrada com um grau de precisão, uma urgência, uma megalomania e uma crueza que não se via desde A Grand Don't Come For Free, o segundo álbum dos Streets. Sim, Everybody Down é assim tão bom, é assim tão importante, é assim tão grandioso.

No Reino Unido, as reacções foram curiosas: quase toda a imprensa se curvou perante esta granada, à excepção das publicações mais old-school, que, ocasionalmente, acusaram “isto” de não ser bem hip-hop e miss Tempest de não ser bem uma MC.

É uma poeta, lia-se aqui e ali, em tom pejorativo. E de facto o currículo não engana: o seu primeiro livro de poesia, Everything Speaks In Its Own Way, esteve nomeado para o Guardian First book Award; a sua primeira peça de teatro, Wasted, andou em digressão pelo Reino Unido duas vezes; Brand New Ancients, uma narrativa em spoken-word que seguia duas famílias, valeu-lhe o Ted Hughes Prize for Innovation in Poetry e o Herald Angel Award. Desde então, miss Tempest recebeu encomendas da BBC e da Royal Shakespeare Company.

Mas há nisto uma pequena confusão: antes da dramaturgia, antes da poesia, já havia o hip-hop.

 

Uma cabeça a explodir
 

“No princípio era o hip-hop”, diz miss Tempest, ao telefone de Londres. “O hip-hop era tudo para mim quando eu tinha 13 ou 14 anos. Fazia mais sentido do que tudo o resto na minha vida. Todos os meus amigos eram MC. Eu não tinha confiança em mim, mas ia pelo país todo ver concertos e ficava cá fora porque era muito nova e tinha de dar muita tanga aos porteiros, que acabavam por fartar-se de mim e deixar-me entrar. Trabalhei numa loja de discos e estourava o meu dinheiro todo em discos. E aos 16 perdi o medo e comecei a entrar em battles [uma forma organizada de duelo em rap: mais ou menos a versão hip-hop de cantar ao desafio]."

Miss Tempest nasceu em Brockley, no Sul de Londres, uma zona “onde não acontecia nada”, e começou “a escrever histórias aos cinco anos”. Estudou música e artes performativas mas desistiu – o que não deixa de ter a sua graça quando pensamos que passou toda a vida adolescente e adulta a, neologizando, performar –, preferindo trabalhar em lojas de discos entre os 14 e os 18 anos. O dinheiro não era usado em renda: vivia em casas ocupadas. 

“Havia uma cena em Brixton, no Sul de Londres, e a gente ficava ali, a fumar um pouco de erva, a mandar rimas”, recorda miss Tempest, que fala como rapa: não só a mil à hora, cheia de pressa de dizer tudo o que tem para dizer, não vá o mundo acabar a meio, como em constantes modulações de voz, acentuando sílabas, alterando a tonalidade. É claro que os anos a fazer performance de poesia lhe dão armas para manipular o discurso – mas também é claro estarmos perante um daqueles casos em que é a paixão pelas palavras que a leva a descobrir as armas a usar e não o contrário.

“Quando comecei a ir às battles, rapei muitas vezes contra homens. Eu parecia ter oito anos de idade, mas era muito agressiva com as letras e era muito intensa. E como as pessoas achavam que eu não me ia safar, tornava-me ainda mais agressiva e intensa e libertava coisas furiosas”, recorda Tempest, que tentou fazer carreira no rap, pondo malhas on-line “antes ainda de haver YouTube”, e depois foi lentamente deixando essa cultura. Isto apesar de ter passado algum tempo a “rapar em marchas políticas”, até se desiludir com o imobilismo social do seu país.

Aos 21, Tempest começou a fazer poesia performativa, uma forma dessacralizada de dizer poesia. “E pagavam-me”, acrescenta com a alegria de uma menina a quem ofereceram uma boneca. “Na realidade, o que eu usava ao início eram os meus poemas de rap, só que sem a batida. E reparei que chegava mais às pessoas só com voz. O facto de ganhar dinheiro ajudou a interessar-me, claro, mas a verdade é que fiquei mesmo excitada com a poesia. E fiz nome na cena de spoken word, embora, para ser sincera, tenha de admitir que eram sempre as mesmas pessoas."

Já celebrada enquanto performer, Tempest editou Everything Speaks In Its Own Way e e tornou-se uma espécie de menina querida da crítica. E foi então que lhe encomendaram uma peça de teatro, que veio a ser Wasted.

“Acho que só tinha visto uma peça na vida – o Grease ou assim, e devia ter uns seis anos. Fiquei petrificada. Não fazia ideia de como compor uma narrativa. Mas – e esta foi a parte mesmo boa –, além do dinheiro que me pagavam, eu tinha bilhetes de graça para o teatro e fui ver muita, muita coisa. Não vou mentir: a maior parte das coisas que vi não me disse nada; por vezes não percebi o sentido das peças e sei que não tinha ferramentas para interpretar muito do que vi. Mas vi duas que mudaram a minha vida: Fim de Partida, de Beckett, e Jerusalem, de Jez Butterworth. Foram a minha salvação no meio da agonia que foi tentar escrever uma peça de teatro."

Miss Tempest diz que descobriu aí que devemos sempre tentar fazer as coisas que não sabemos fazer. “Quando percebi que havia outros géneros disponíveis além da poesia, bem: foi como se minha cabeça explodisse: narrativa, personagens, de repente percebi que podia fazer tudo, podia enfiar tudo em todo o sítio." 

Quase sem parar para respirar, Tempest atira e acerta no alvo: “E se até então eu própria me sentia confusa acerca do que queria ser – se poeta, se performer, se rapper –, agora já não há confusão. Não estou a tentar ser nada, sou só obcecada com a linguagem."<_o3a_p>
 

A poesia da tempestade
 

Quando Kate Tempest conheceu Dan Carey (conhecido pelas suas remisturas para gente como Bat For Lashes e os Hot Chip), já tinha essa noção de que podia ser tudo – poeta, dramaturga, romancista, performer, professora (dá aulas de escrita em Yale) e música. Os Sound of Rum, banda que manteve durante algum tempo, chegaram a fazer digressões pelos EUA e, apesar de ter passado algum tempo afastada do hip-hop, ela nunca deixou por completo de sonhar uma carreira como MC.

“Quando comecei o disco estava desesperada para trabalhar com o Dan, chateei-o imenso, e um dia ele ligou-me a dizer que tinha tempo. Abandonei tudo o que estava a fazer e fui para o estúdio com ele. Nesse dia fizemos um tema em que apareciam Pete e Becky [dois dos personagens principais do disco: Becky é uma modelo que dança num vídeo realizado por Marshall Law, vídeo cuja festa de lançamento é descrita no primeiro tema, com a frase com que iniciamos este texto]." Tempest relata esta simples ida a estúdio com a ferocidade d uma repórter a descrever uma guerra com bombas a caírem ao lado.

A sorte dela foi Dan ficar entretanto ocupado durante meio ano. “A verdade é que nesses seis meses comecei a perguntar-me quem eram aquelas personagens. E quando voltámos a falar tinha seis ou sete capítulos de um romance e já sabia tudo o que ia acontecer." 

Façamos agora uma pausa para explicar que Everybody Down começou por ser um simples tema com um par de personagens e depois se tornou-se um romance, ou pelo menos a primeira versão de um romance. A ideia de Tempest foi tão simples quanto complexa: a primeira versão do romance seria transformada em álbum; posteriormente, reescreveria o romance com mais tempo.

“Percebi que o romance teria 12 capítulos e que cada capítulo ia ser uma canção. Quando chegou a hora de compormos o disco, sabia tudo sobre a história e aquelas pessoas. Na realidade, e como podes imaginar, tinha muito mais do que era possível pôr em cada canção. Mas sabia o que era importante entrar e o que podia deixar de fora. Quando escreves um romance pensas que tudo é importante, a mais minúscula descrição de um local, o ínfimo pensamento de uma personagem, porque nunca é suficiente – temos todos tanta coisa dentro de nós que nunca é suficiente, e queremos pôr num romance tudo o que possa haver dentro de uma personagem. Mas quando fazes de um capítulo uma canção e ela acaba com dez minutos e a achas chata, mais vale seres sincero contigo mesmo e admitir que queres uma canção mais curta. E aí tens de reduzir e aí vês o que é verdadeiramente essencial. De quanta descrição precisas? Quando é que tens de entrar nas cabeças das personagens? E os dez minutos de canção acabam em quatro." 

Quando miss Tempest fala em entrar na cabeça das personagens não está a brincar: isto existe de facto em Everybody Down, o que, ouvindo o disco à lupa, o torna um portento de linguagem. Não no sentido mallarmeano do termo; o que há aqui de extraordinário é a maneira como esta rapariga enfia as mais díspares técnicas narrativas e as condensa numa frase, passando de descrição para monólogo interno para narração em terceira pessoa no intervalo de três versos – um milagre de condensação e de detalhe.

Marshall Law, que além de personagem é o nome do primeiro tema, é um exemplo desta ciência da condensação. O primeiro verso, com que abrimos, atira-nos de imediato para um universo preciso. Agora atentem no que se segue: Becky's at the barwith the usual mix of decadent fabrics and desolate lightningeverybody here's got a hyphenated second name (…)/ industry slimeballs, showbizz big dealsthe cool new band (…)/ the rap party for their video// Becky danced in itthe director Marshall Law (…)/ is holding court about the science of imagewhile the (...) fans giggle and grimace// Becky (…) tells herself'Must stop being so cynicaleverybody here is a human/ even this pitiful posturing pop stars'”.

Somos de imediato cativados pela dualidade que esta mulher encerra enquanto mantém a postura que lhe é pedida. De seguida, e na mesma canção, ela olha para um homem, apenas porque está aborrecida; mas esse homem toma o olhar dela como um sinal de interesse e desata a contar-lhe os seus planos (uma parte dos quais falsos); ele está verdadeiramente embevecido com a rapariga, mas não pode – por mais que queira ser honesto com ela – contar tudo sobre si (porque tem, digamos, segredos), desconhecendo que Becky não é estranha ao universo que ele está a tentar esconder (porque tem, digamos, vícios).

Miss Tempest entra na cabeça do homem, narra na primeira pessoa o desespero dele quando a vê ir embora (“Don't leave, please/ we just got started/ (…)/ he feels sick with confusion”. No táxi (onde, diz-nos Tempest, se ouve a canção para cujo vídeo se realizou aquela festa), uma das amigas de Becky pergunta-lhe quem era o tipo. A resposta dela está nos últimos versos do tema: Him? I don't know. (…) Maybe one of those save-me types, but I couldn't be dealing with that, not tonight”. 

É um espanto. Ainda maior quando um par de canções à frente esse homem se auto-flagelar por ter estado a escancarar a sua vida a uma desconhecida que não lhe deu bola. “Adoro romances, adoro narrativa”, diz a poeta da tempestade. “Agora parece que tomei grandes decisões sobre o que pôr ou não no disco, mas foi tudo intuitivo. Foi um jogo muito excitante, tentar que o disco ficasse mais e mais coeso. Queríamos fazer um disco que nos excitasse, tínhamos duas semanas e foram duas semanas maravilhosas. Acho que se nota."

 

Fucking England

Claro que “as primeiras editoras” que ouviram Everybody Down “não percebiam o que o disco era”. Compreende-se a confusão (sentimos o mesmo ao início), mas podemos dar-vos uma ajuda: Marshall Law (a canção) introduz algumas personagens e o universo público em que se movem; The truth revela o tema do disco: a dualidade entre ânsia amorosa e liberdade da geração que vive o amor “in a time with no sacrifice/ we want what we want and what more: we deserve it”. E Lonely daze é narração pura de quem são estas pessoas. Pete, por exemplo, “grew up in a city where you master your pain or you end up numb, not feeling”. Happy end acaba no aniversário de Pete, com todas as personagens reunidas, e pelo meio há uma faixa que é a cantiga para cujo vídeo se fez a festa que abre o disco (e que Tempest diz que se ouve no táxi).

A coisa mais extraordinária em Everybody Down é, como diria Bruno Aleixo, duas: como Kate entrega cada uma destas palavras, mudando o seu tom para, por exemplo, imitar comicamente um traficante de droga, ou acentuar um flirt entre duas personagens; e como a música se adapta às palavras.

Não que não haja um som a unir as canções: beats simples, mínimos, e uma espécie de negrume industrial. “Claro que [o disco] é escuro e triste: isto é a fucking England, por amor de Deus." Mas se um tema se passa numa discoteca, os beats aproximam-se de um som mais dançável; por vezes há traços de reggae; e há uma guitarra indie-rock em The beigeness que ecoa o gozo ao universo do rock que há no disco.

O resultado não é apenas um portento de hip-hop: é um portento que partindo de hip-hop negro, quase industrial, varre géneros sem fim enquanto miss Tempest espalha um talento inimaginável, criando personagens precisas em catadupa. É uma tareia emocional, porque Tempest é de facto uma escritora tremenda, que escava e escava e sai-se com pérolas como “When all you got is a hammer/ everything you see seems nails” a cada par de versos, fazendo-nos rir, mas também levando-nos quase às lágrimas com a tristeza desta gente. E é uma tareia musical, que nunca pára de nos pôr a dançar, a abanar os ombros ou a moer a cabeça.

Entretanto, Kate Tempest acabou a primeira versão do romance, mas agora já não gosta dele. Vai levá-lo até ao fim do ano e sairá em 2016. "Será uma experiência muito diferente e independente do disco", garante. "Não será preciso ouvir o disco para perceber o romance e não será preciso ler o romance para perceber o disco." 

Mesmo no finzinho da entrevista – depois da porrada toda que levámos, visto miss Tempest ser uma daquelas pessoas a quem se diz olá e elas não param de falar, disparando para todos os lados, discorrendo sobre o amor, as drogas, o preço das rendas, o que lhe passe pela cabeça no momento ou o que a obceque há anos –, com uma voz à beira das lágrimas (e se estava a manipular-nos então parabéns, porque assim sendo mente com uma categoria impressionante), miss Tempest dá a única definição do seu disco/romance: “É negro e é industrial e é sobre solidão porque é inglês, mas foda-se, acima de tudo para mim é sobre pessoas e a luta que travam para terem amor e se agarrarem a alguma esperança. E isso é tudo o que importa: amor, pessoas e esperança. Tem de haver amor e esperança nesta vida, se não, foda-se, se não não estamos aqui a fazer nada. Se não, eu não estou aqui a fazer nada”. 

E foi então que por fim se calou, num daqueles silêncios pesados e incómodos, Miss Tempest. Deus guarde esta extraordinária mulher por muitos anos.

 

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