O Museu dos Coches e a cascata de fogo preso em Belém

O novo Museu dos Coches, para além de não prioritário e mesmo inconveniente a uma política museológica nacional com pés e cabeça, seria como que uma espécie de elefante em loja de cristais.

Ouvido na AR, o secretário de Estado da Cultura (SEC) teceu um conjunto de considerações sobre os planos para o eixo Belém-Ajuda, todas vagas, e afirmou concretamente que o novo Museu dos Coches abrirá em 22 de Maio próximo (ou 23, como corrigiu depois). Vistas com cuidado e desencriptadas por quem acompanha de perto estes temas, as ditas considerações só podem significar uma coisa: O Museu dos Coches descolou do plano supostamente pedido a António Lamas para o parque museológico e património do eixo Belém-Ajuda.

Encurralado em vésperas de eleições (nas quais a oposição socialista, autora do projeto nos tempos do desvario socratista e seus tentáculos, não deixaria de o confrontar, ou mesmo achincalhar com a inépcia de ter mantido o museu fechado durante toda uma legislatura), o Governo entendeu resolver já este problema, abandonando a proposta que Lamas vinha sugerindo. Este último bem se pode cuidar para que afinal não venha mesmo a ser uma espécie de “liquidatário” do CCB.

Admitiu o SEC que “a sustentabilidade não é evidente”, mas disse estar a trabalhar no assunto. Ora, o busílis da questão está aqui. Desde sempre tenho referido, tal como a generalidade dos museólogos, que o novo Museu dos Coches, para além de não prioritário e mesmo inconveniente a uma política museológica nacional com pés e cabeça, seria como que uma espécie de elefante em loja de cristais. É agora altura de aprofundar a metáfora e para tanto apenas me ocorrem os manuais de prestidigitador e pirotécnico dos finais do século XIX, onde nos eram ensinadas as artes da dissimulação e do fogo preso.

Dissimulação, disse: passará o novo modelo de sustentabilidade do Museu dos Coches pela sua entrega (mais ou menos encapotada) à “exploração” de privados, parasitando tesouros nacionais e promovendo carros antigos, assim convertendo o todo mais em stand automobilístico do que em verdadeira unidade museológica? É que só através deste tipo de malabarismos será cogitável admitir recolher as receitas necessárias aos custos de 3 a 4 milhões de euros anuais que se diz serem os de manter o museu aberto.

O separar de águas entre Museu dos Coches e tudo o resto é reforçado quando o SEC diz – e muito bem – “não vamos transferir o modelo da Parques Sintra-Monte da Lua, estamos a falar de coisas diferentes”. Ou que em Belém “há um cuidado necessário que envolve diversas tutelas, inclusivamente órgãos de soberania diferentes, poder local e administração central, essa articulação é um trabalho que está a ser feito”. Ou seja e lido por pessoas chãs: o plano de Lamas é para ir fazendo, devagar, devagarinho, talvez parado em futuro próximo.

Ora, o que pretendia este plano? Precisamente usar o incómodo político da não abertura do novo Museu dos Coches, cavalgando-o, oferecendo-lhe solução numa visão de gestão integrada do património de toda a zona. O próprio Lamas já tinha, segundo se diz, percebido quão quimérico era o seu objetivo inicial. Tinha vindo a reconfigurar o arco da sua possível intervenção, limitando-o ao essencial: o Centro Cultural de Belém (o verdadeiro grande problema cultural da zona, dada a situação financeiramente insuportável em que se encontra, com consequências devastadoras na sua autonomia administrativa), o novo Museu dos Coches (usado para satisfação do “aperto” do Governo) e… claro, o Mosteiro dos Jerónimos e Torre de Belém, verdadeiras “galinhas dos ovos de ouro” de todo o sistema.

Importa reconhecer que, de todos, o plano de António Lamas era e provavelmente é o de maior visão estratégica para a zona, o que mais poderá “construir cidade”, mesmo se os seus outrora sonhados projetos de conclusão do CCB, com a construção do que falta, de enterramento da linha férrea e de completamento do Palácio da Ajuda, não pudessem concretizar-se a curto ou médio prazo. É também o único que poderia mobilizar o capital de que urgentemente necessita o CCB para readquirir o músculo financeiro que lhe permita recomeçar e, quem sabe, produzir receita (coisa que Lamas nos ensinou bem como se faz em Sintra). O problema, se problema existe, são os princípios: para que serve o património e quais os incentivos à sua apropriação pelos cidadãos nacionais. Mas quanto a princípios, sabemos bem como eles mudam e, além do mais, como dizia Groucho Marx, “estes são os meus princípios, mas se não gostar deles… bem tenho outros”.

Acresce que a cascata de fogo preso indicada, mesmo na sua versão mais ligeira, colocava grandes problemas à Direção-Geral do Património Cultural. De tal modo que quando se começasse a querer montá-la depressa se concluiria que apenas seria viável se fosse alargada a todo o País. A perda da fonte de receita dos Jerónimos teria forçosamente de ser compensada pelo regresso à casa-mãe de alguns dos outros blockbusters dos monumentos, como o Paço Ducal de Guimarães. Por extensão e para maior economia de gastos, poderia admitir-se extinguir as direções regionais de cultura, aproveitando também para transferir a tutela de vários museus para as autarquias. Mas, chegados aqui, alguém necessariamente terá perguntado se seria sensato proceder a tudo isto em vésperas de eleições.

E não é difícil antecipar a resposta. Aliás, ela foi agora dada pelo SEC, segundo parece.

Arqueólogo

O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários