O mundo sem nós

Na impossibilidade de regressar a uma forma de vida que integre toda a natureza como humanidade e na dificuldade de poder representar o mundo como se não houvesse história, o que nos resta é repensar o mundo na perspectiva da sua finitude e da sua evidente extinção.

Neste jornal, no passado dia 22 de Abril, Nicolau Ferreira publicou um artigo intitulado “Antropoceno: E se já mudámos para sempre a história geológica da Terra?”. Foi um artigo importante porque trouxe para o espaço público mais alargado um debate que, embora fulcral, tem estado limitado aos espaços de algumas academias e centros de investigação.

Tal dificuldade deve-se, entre outras razões, ao facto de que o tema coloca a questão da sobrevivência da humanidade. O artigo de Nicolau Ferreira, sustentado num conjunto de teses científicas recentes, tem o grande mérito de explicitar convenientemente o tema, a sua história, as múltiplas datas para a sua génese e finalmente o que está em causa. E seja a data de referência a mais radical, que indica que o Antropoceno se iniciou no momento em que o homem apareceu na terra e aí terá começado o seu rasto de destruição, ou uma data mais recente, 16 de Julho de 1945, dia do primeiro teste nuclear, o que está em debate é que a presença do homem na terra é a presença da destruição.

Acrescentamos a este artigo um outro ponto de vista, evocando as teses de Bruno Latour, Eduardo Viveiros de Castro e Dipesh Chackrabarty, mais focadas nas questões antropológicas e de estudos de cultura. E neste sentido o debate das alterações climatéricas tem sido um debate adiado, ou falseado, porque tem havido da parte dos governos do G7 a insistência em excluir da historiografia a história climatérica e em separar a política da ciência.

Ora o que nos vêm dizer os autores acima referidos são três coisas: primeiro, a modernidade europeia que se impôs na colonização fê-lo decepando nas comunidades ameríndias a natureza do humano e a natureza da cultura. Ora as comunidades ameríndias tinham vivido, e na perspectiva ameríndia continuam a viver, sem esta separação: tudo é humano, de humanidades diferentes, segundo o ponto de vista da própria natureza. Assim os danos do Antropoceno não atingem exclusivamente a humanidade que existe na natureza mas tudo o que é humano, incluindo o próprio homem (Viveiros de Castro). Tal atitude dos governos e das empresas colonizadoras é indissociável daquilo que se designa como a “westernização” do mundo, processo pelo qual os cânones e a interpretação do mundo de origem e matriz europeia foram impostas a todo a Terra no início da primeira globalização, a da ocupação dos continentes americano e africano. Essa imposição transporta hoje um efeito perverso, que é o de se pensar que cabe aos europeus essa “deswesternização”, armadilha que os neocolonialismos tentam impor. Veja-se a forma como os modelos económicos assentes na exploração dos recursos naturais – na destruição da humanidade, na perspectiva ameríndia de toda a humanidade – são impostos ou importados como se não houvesse outra alternativa de ser humano.

Mas ainda aqui os governos e a lógica do pensamento capitalista levaram ao extremo esta separação entre natureza e humanidade e no género humano criaram espécies e sub-espécies. O africano, depois de ser categorizado como negro, foi categorizado como raça e hoje o capitalismo global colonizador impõe que o futuro da maioria da população seja o vir a ser outra vez negro: não são precisos exemplos muito rebuscados. Basta ver o que está a acontecer aos milhares de pessoas que tentam fugir para a Europa. Começam por ser designados como imigrantes ilegais para virem a ser considerados como negros na nova linguagem neocolonialista. Não é resultado de uma intervenção no clima? É porque na sua origem está uma relação de predação dos recursos naturais em prol de um lucro que beneficia toda a cadeia de exploração maciça dos recursos naturais e a exclusão dos bens elementares a quem não está subjugado a essa cadeia de produção e de distribuição.

Um terceiro aspecto decorre da visão apocalíptica que é por sua vez narcísica do Antropoceno. Os defensores do criacionismo, aliados aos tecno-economicistas que centram os debates exclusivamente nas maiores ou menores alterações climatéricas, ocultam também por efeito narcísico que o mundo, melhor dizendo a Terra, está para lá do homem e da sua posição de soberano sobre o mundo. Movidos por uma história cultural que os coloca como criação e como criador esquecem que, como o afirma Lévi Strauss em Tristes Trópicos, “o mundo começou sem o homem e terminará sem ele”.

Na impossibilidade de regressar a uma forma de vida que integre toda a natureza como humanidade e na dificuldade de poder representar o mundo como se não houvesse história, o que nos resta é repensar o mundo na perspectiva da sua finitude e da sua evidente extinção (Chackrabarty). Como diz Bruno Latour, como o ambiente muda cada vez mais depressa que a sociedade, o futuro é cada vez mais imprevisível e nenhuma âncora cultural que não passe por se pacificar com o que resta de humano na natureza o pode impedir. Cabe-nos pensar se queremos que a agonia seja a longo prazo e curta ou breve e longa.


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