O mundo meu irmão longínquo

A poesia precisa e elíptica de João Almeida encontrou há muito o seu lugar, mesmo que de difícil acesso

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A poesia de João Almeida tem uma linha de tiro com um alcance muito próprio, voltado para o mundo em redor Ana Guimarães

Nem uma publicação comparati-vamente discreta — cinco livros, desde O Mal dos Postes de Alta Tensão (Black Son Editores, 2000) — justifica o relativo silêncio que tem recebido a poesia de João Almeida. Sobretudo se atendermos ao facto de o autor ter colaboração dispersa mas frequente em revistas e edições colectivas. Esta escrita, precisa e elíptica, com uma firmeza de expressão adequada à rugosidade de que se rodeia, encontrou há muito o seu lugar. Um lugar escalavrado, cujos acessos não serão os mais fáceis, tortuoso nos seus caminhos.

O primeiro verso do livro — “Saímos para a rua” (p. 9) — fornece uma indicação importante para a sua leitura: talvez mesmo para outros passos da poesia de João Almeida. A primeira parte de As Condições Locais chama-se, precisamente, A Estrada Plana, e recorde-se que o título do seu anterior livro era Um Milagre no Caminho (Averno, 2011). Noutros lugares de As Condições Locais, as deslocações — “Passam dois agarrados/ A passo rápido” (p. 29) — e o chão por elas pisado — “E sem acaso/ Vai levar o seu caminho” (p. 13) — têm uma presença que pode, sem grande extrapolação, considerar-se relevante — “Não tenho frio/ Mas já o vi no caminho/ Como um salteador/ Sem piedade” (p. 25). O que ressalta destes exemplos não será tanto o simples facto, episódico ou meramente processual, de uma recorrência estilística. Passa-se, antes, que a própria atitude do sujeito poético se adequa e necessita, por assim dizer, dessa deambulação. Porque o seu contacto com o mundo, seu “irmão longínquo” (p. 46), é, simultaneamente empenhado e desprendido. A caminhada e os cenários nela rasgados estão, nestes versos, longe de uma postura de vagabundagem solipsista, ou, do outro lado do espectro, de uma posição calculadamente irónica. A energia e a compulsão patentes na atitude do sujeito entram em confronto com a ruindade de que se aproximam; as tensões sociais, os despautérios políticos e económicos aqui defrontados, fazem subir a temperatura do poema, mas apenas até onde o seu próprio termóstato permite, o que trava qualquer excesso.

No seu caminho, As Condições Locais apropria-se de um léxico, ora oficial, ora institucional, cuja revolução o poema vai determinando. Termos como “perímetro de segurança” (p. 11), declarações como “escrevi no comunicado várias vezes” (p. 29), reparos, sempre oblíquos mas incisivos, feitos a um “salário/ Ratado” (p. 43), ou a fixação, no poema, de circunstancialismos tornados axiais, como “os inventários a seu tempo/ Serão feitos” (p. 47) — todos eles se insurgem, no tecer do verso, impondo-lhe uma gravitas própria. A qual se suspende sempre a tempo de deixar respirar o andamento elegantemente objectivo destas composições. O poema desenvolve o estado das coisas munindo-se dos aprestos do próprio mundo, pelo que o oficial se torna oficioso, nos foros de uma poesia cuja linha de tiro tem um alcance muito próprio, voltado, precisamente, para o mundo em redor.

A proposição deste poeta e desta poesia exprime-se pela negativa — “Nunca cantaria uma cidade/ As ruas as pessoas todas as ladainhas/ Nem as serras e os montes/ Talvez um cão” (p. 43). Ao listar os temas que recusa — mas que, na verdade, desenvolve —, o que João Almeida faz é demarcar um território e projectar um limite. Assim, a sua poesia não se resigna ao servilismo de fazer assim, ou de outra forma qualquer, de escolher este tema, ou aquele, mas estreita o seu âmbito até chegar ao cão. Este bem poderia constituir um dos símbolos para o entendimento da poesia de quem já escreveu: “riscar o que não interessa” (Glória e Eternidade, Teatro de Vila Real, 2009), ou “o resto é abaixo de gato” (id.). Nisso revela uma opção clara: descer, descer e descer, desde a elevação lírica, até ao chão. E lá ficar.

Um poema como Sobe Fumo do Vale Fértil (p. 45) permitiu a João Almeida problematizar certos aspectos conotados com o fenómeno religioso e, porventura, também relacionáveis com as “condições locais”. Nele, parte de um conjunto de elementos declaradamente inscritos no mecanismo, léxico e ritualismo eclesiásticos – “Os cónegos regulares”, “Santo Antão”, “os crentes” —, reconverte alguns desses sinais noutra coisa que não exactamente o ponto de partida, transformando a fórmula de uma prece na denúncia de um estado de coisas — “pão-nosso daquele dia” –, para, por fim, dirigir a sua adaptação da Palavra num verso que, isolado em monóstico, dissolve a atmosfera espiritual que se insinuara, mas se subverte gradualmente — “Eu posso atirar a primeira pedra”. Não é que o poeta, ou o seu avatar, o sujeito deste poema, se invista de qualquer poder ou estatuto especial; simplesmente, o seu poder de observação permite-lhe o afastamento e a aproximação essenciais para poder encetar aquele gesto.

Quais as “condições locais” deste livro? Talvez as de uma “cidade sitiada” (p. 9), ou as contidas num “alfinete municipal” (p. 39). E, porventura, as mesmas que ditaram que, num outro livro, João Almeida tivesse citado um edil energúmeno — “quem faz greve não tem direito a consoada” (A Formiga Argentina, Averno, 2005). Ou seja: em meio hostil, esta poesia reage perante o que a condiciona e a impele. Lugares cercados por fogo e por explosões: de fogo e de carne; animais que já não é possível voltar a ver; um ar que se respira deliberadamente; um novo Prometeu, roído nos fígados, e um estropiado coração “no caixote do lixo indiferenciado” (p. 30); o alimento resumido a uma ração; o nomadismo do salário em salário. Não serão estas as condições? 

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