O meio-olho do Doutor Stone

Um filme que é mais um instrumento de pressão política do que uma reflexão ou problematização do caso.

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Fica-se a lamentar aquilo que Snowden não é: uma reflexão sobre a era do pós-privacidade

Edward Snowden está em Moscovo, herói para uns e traidor para outros, e nos Estados Unidos discute-se o que se deve fazer com ele, perdoá-lo ou continuar à espera do momento que se possa castigá-lo. Este contexto não deve ser esquecido perante o filme de Oliver Stone, porque Snowden é um produto dele, do contexto, é mais um instrumento de pressão política do que uma reflexão ou problematização do caso de Snowden e das suas implicações, é mais uma forma de o apresentar a uma luz imaculadamente positiva do que uma tentativa de responder à pergunta “quem é, na verdade, Edward Snowden”?

Stone não tem dúvidas, e no momento em que se discute se se trata de um santo ou de um vilão, o pressuposto básico de Snowden é que se trata de um santo e como santo é retratado. Nem é preciso estar mais próximo da posição de Stone do que da posição contrária para desconfiar de uma “vida de santo” tão santa quanto esta. A pecha maior de Snowden é proteger tão bem o seu protagonista que nem a tentação diabólica aparece em pleno. Explicamo-nos: se Snowden é apresentado, desde o princípio, como um conservador convicto (mas não especialmente fanático ou entrincheirado, e suficientemente razoável para conseguir ter uma namorada “liberal”) e genuinamente crente da bondade das acções de espionagem electrónica que desenvolve para a CIA, NSA, e etc, apenas lentamente vai resvalando para o “outro lado” (vemo-lo a torcer pela eleição de Obama em 2008), aliás num processo que mima o confessado trajecto político do próprio Oliver Stone, o momento da epifania é completamente falhado. Aquele momento, que podia ser a melhor cena do filme, em que um seu colega o introduz ao espantoso poder do PRISM, o sistema de vigilância que virtualmente permite saber tudo sobre todos os cidadãos do mundo inteiro que alguma vez tenham deixado algum tipo de rasto electrónico.

Humano seria se se visse, no rosto de Snowden, a sombra de uma tentação, um meio-segundo de hesitação perante o fascínio e o poder que semelhante maquinaria oferecem. Mas se Snowden sente alguma espécie de tentação ou atracção (digamos, e para simplificar, pelo Mal), não importa quaão fugidia, isso não se vê. Tal como Stone, a sua posição está estabelecida e definida à partida. O filme ganha aí um santo, mas perde uma personagem.

E depois é um assunto bastante bisonho, dividido entre um arremedo biográfico (ecos, no início, de Nascido a 4 de Julho) dado em vinhetas sem grande profundidade, e uma reconstituição daquele momento de 2013 em que Snowden se encontrou, num hotel de Hong Kong, com um grupo de jornalistas ocidentais (onde pontifica Laura Poitras, que depois transformou o registo do encontro num filme, Citizenfour, bem mais interessante do que o de Stone). Entre o vago “suspense” dessas cenas e a superficialidade da biografia o filme perde-se, numa sucessão de diálogos exemplares, muito campo/contracampo e muita “cabeça falante”, num estilo (se a palavra “estilo” faz sentido quando aplicada ao cinema de Oliver Stone) tão neutro e desinteressante como o de um vulgar telefilme, antes de fechar o jogo da hagiografia incluindo, no final, planos do verdadeiro Snowden com música e iluminação a tenderem para a homenagem e para a “elegia”. É finalmente a meta de Stone, chegar a um longo “spot” em prol da imagem de Snowden, mas a honestidade com que a sua intenção é contida pelo filme não chega para salvar Snowden de ser apenas aquilo que é. Fica-se a lamentar aquilo que não é: uma reflexão sobre a era do pós-privacidade, sobre os “mil olhos do Doutor Mabuse” que Fritz Lang imaginou no princípio dos anos 1960 (no seu derradeiro filme) e que só agora o mundo realmente concretizou. E, na sua abstracção “prospectiva”, o filme de Lang ainda nos explica mais sobre o mundo em que vivemos do que a pobreza, descritiva, virtuosa e hagiográfica de Snowden.

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