O megalómano humilde

Quem é que se estreia com um disco triplo que parte do jazz para se atirar a todos os géneros? Um doido? Um megalómano? Um génio? Ou um miúdo que cresceu cheio de música na cabeça, como este Kamasi Washington?

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Talvez Kamasi Washington não estivesse a ser arrogante quando resolveu chamar Epic ao seu disco de estreia. Talvez tenha sido a única palavra que encontrou para definir uma obra que se estende por três discos. Ou talvez estivesse a sintetizar o desejo que fermentava em si há anos: criar um álbum de jazz indomável, que se borrifasse para rótulos, fronteiras e géneros e alcançasse aquele ponto em que a música deixa de ser um conjunto de notas para se transformar num ascensor rumo à epifania.

Epic. Nome mais do que apropriado. Tanto que podemos definir como épica a reacção da imprensa e dos ouvintes: tem sido visto como um cometa, o tipo de disco que já não se faz, o objecto mais surpreendente e inclassificável de 2015. Há dois baixistas, dois bateristas, um coro, uma orquestra completa, faixas que se estendem até aos 15 minutos e nunca descem abaixo dos seis. Há improvisação, momentos de loucura, mas também arranjos meticulosos, melodias arrepiantes e uma secção rítmica capaz da brutalidade de uma parelha de britadeiras com mau humor. Epic: o nome faz todo o sentido, sim senhor.

Desengane-se quem partir do princípio de que o homem que imagina um disco assim terá por força de ser um sujeito insuportável e de mau feitio. Kamasi Washington, em conversa, aparenta ser um homem normal, suficientemente humilde para dizer que teve “sorte, muita sorte mesmo”.

Sorte, aqui, é uma menção a Flying Lotus, o músico e sobrinho de Alice Coltrane que o convidou a lançar-se na sua editora e que, perante o produto final, em vez de mandar o disco triplo dar uma curva bateu palmas e pô-lo cá para fora. Mas a sorte, aqui, também é genética: “O meu pai também é músico. É saxofonista”, conta. A mãe, não sendo profissional, “também toca flauta”. Em casa “havia música em todo o lado e muitos instrumentos”.

Kamasi não se recorda, mas o seu pai garante-lhe que começou “a tocar bateria aos dois anos”. Aos cinco (e disso ele lembra-se), “já tocava piano". "Passei para o clarinete aos oito. Cheguei ao saxofone aos 13." Mas só se tornou “sério em relação à música" quando um primo lhe fez uma compilação do Art Blakey. Sério ao ponto de se sentir a influência de Blakey em Epic.

Jazz em tempos de hip-hop
Nativo de Los Angeles, Kamasi Washington cresceu no ambiente perfeito para um filho de músico de jazz que queria ser músico de jazz. Frequentou “um liceu para músicos” e integrou uma banda que era uma espécie de dream team de super-estrelas juvenis, a Multi School Jazz Band, “um grupo composto pelos melhores músicos jovens da zona, maioritariamente afro-americanos”. Os ensaios eram em South Central, “onde a influência da comunidade afro-americana se faz sentir profundamente”.

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Kamasi Washington é um filho de músico de jazz que quis ser músico de jazz em tempos mais favoráveis ao hip-hop — mas mesmo assim ele chegou lá

No tempo do hip-hop, a cultura jazz estava por todo o lado, rodeava Kamasi, que mais e mais se fascinava com ela. Se nos pusermos a pensar, um miúdo nascido em 1981, fascinado com o jazz, tinha tudo para ser gozado pelos amigos. Mas nada disso aconteceu com Kamasi, que cresceu protegido: “Ainda toco com malta que conheci aos 12 anos, e todos adorávamos jazz."

Desde cedo, conta, era visto pelos outros garotos “como um embaixador da música”. “Sempre senti que havia uma ligação entre todos os géneros. Sempre senti que havia ligações entre o jazz e o hip-hop e a soul. Então eu era aquele miúdo que estava sempre a mostrar discos aos amigos e a explicar-lhes a relação entre os géneros."

Fazer parte da Multi School Jazz Band fez-lhe bem, porque “os miúdos eram todos bons, muito bons mesmo”. Alguns, diz, melhores do que ele. Foi então que veio a epifania. Num certo Verão, a banda tocou num festival “grandinho”. "Tive de tocar um solo numa canção em que nunca o tinha feito. Em frente a milhares de pessoas. E não gostei do que ouvi." O resultado foi uma mudança radical de atitude: Kamasi decidiu que a partir daí “ia ser mesmo muito bom”.

O pai veio em seu socorro. “Obrigou-me a ler biografias – do Miles Davis, do Charlie Parker, as suas quedas, as suas dificuldades." E assim Kamasi, que em miúdo ia “com seis ou sete outros miúdos a concertos de jazz quando ainda não tinha idade para tal”, ficou advertido dos perigos e das dificuldades da profissão. E fez uma escolha: “Tornei-me muito concentrado e preferi passar o meu tempo a ensaiar sem parar. Todos os grandes músicos de jazz têm essa característica comum: estão sempre a praticar."

O jazz, contudo, teria de esperar. O primeiro concerto pago de Kamasi foi com Snoop Dog. "Um amigo que tinha estado comigo na Multi School tinha conseguido fazer parte da banda dele e levou-me para lá." Não era caso único: “Toda a banda do Snoop era composta de  músicos de jazz."

Ao mesmo tempo, Kamasi criou a sua própria banda, que ainda dura até hoje e fez parte de Epic: “É tudo malta que eu conheço há muito tempo e que vem dos tempos de liceu." Como os velhos músicos de jazz, tocam todas as noites. “Mas nunca tocamos todos juntos. Com o tempo a banda foi alargando. E como todos somos músicos de estúdio e tocamos ao vivo com formações pop, sempre foi difícil reunir toda a gente." 

Até ao dia em que ele resolveu reunir toda a gente. Já nem se recorda bem quando: “Talvez em 2003 ou 2004 ou 2005." Mas saiu desse ensaio com uma certeza: “Comecei a pensar que tinha de fazer aquilo mais vezes. Aquela tinha de ser a minha banda."

Outra ambição
Entretanto, a vida de Kamasi Washington como músico contratado corria bem: tocou com Lauryn Hill e com Raphael Saadiq e deu por si a colaborar com Kendrick Lamar. “Na universidade, a minha especialidade foi composição. No álbum do Lamar fiz os arranjos. Foi uma grande chance." Outra grande chance foi o momento em que Flying Lotus lhe pediu um disco, dando-lhe rédea solta para fazer o que quisesse. “Há anos que eu compunha. Escrevia canções e depois levava-as à banda." Sendo que a banda, num ensaio, podia ser de cinco elementos e no dia seguinte de sete ou apenas três.

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Lauryn Hill, Kendrick Lamar e Raphael Saadiq são nomes que Kamasi acompanhou

Perante o convite de Lotus, Kamasi ponderou as suas hipóteses. “Apercebi-me de uma coisa: tive a sorte de ter todos os trabalhos que fui tendo. Estive sempre no activo, tocava todas as noites, e como sempre fui muito aberto musicalmente toda a gente me chamava para tocar, fosse que género fosse. Até jazz etíope toquei." O esforço permitiu-lhe “poupar algum dinheiro”. Kamasi sabia que “hoje em dia não há orçamentos para fazer grandes discos”, pelo que numa editora convencional não poderia fazer o álbum que queria. Só encontrou uma solução: “Investi todo o meu dinheiro e pedi muitos favores. E tive de não pensar se ia recuperar o dinheiro. Pensei apenas na música que queria fazer."

Por fim, enfiou toda a banda – mas agora mesmo toda  na sala de ensaios “durante um mês". Não trabalharam só nos seus temas: “Trabalhámos nos discos todos de toda a gente. Se alguém tinha uma ideia para um disco, trabalhávamos nisso." Gravavam “12 horas por dia” e no fim tinham “oito discos diferentes, mais de 200 canções gravadas”. Só dele eram 45.

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Capa do álbum Epic
Seven Prayers Kamasi Washington
Askim Kamasi Washington
Final Thought Kamasi Washington

Isto permitiu-lhe seleccionar o que editar, tarefa que lhe levou “quase um ano”. Outro ano foi gasto “a compor as partes de cordas e os coros”. E outro tanto foi para misturar o disco. Em 2014, Kamasi Washington ouviu tudo o que tinha feito e deu a tarefa por acabada. Demorara anos, quase uma década, mas por fim conseguira o seu épico.

“Eu tinha uma boa vida, sabes? Tocava para músicos consagrados, podia dar os meus concertos por fora." Mas houve sempre outra ambição: “Eu quis sempre fazer a minha coisa, só que não tinha forma de a pôr cá fora. As pessoas em Los Angeles sabiam que nós estávamos a trabalhar. Tinham por vezes, quando a banda se reunia ao vivo, uma ideia do que seria, incompleta porque nunca tocávamos todos juntos. Mas o que não havia era maneira de pôr cá para fora o som que eu tinha na cabeça." E o que tinha na cabeça é tão complexo, tão cheio de curvas e contracurvas, tão imprevisível, que para defini-lo teria de "usar uma frase infinitamente grande”.

Agora que Epic está finalmente cá fora, Kamasi Washington não está assim tão surpreendido com a reacção das  pessoas. “A malta do hip-hop tem apresentado o jazz ao público, e o público habituou-se. Sem a educação que eles proporcionam ninguém ligaria ao meu disco." Ele, pessoalmente, nunca teve medo de ser mal recebido, apenas “de não conseguir acabar o disco e editá-lo”. De modo que passou por momentos de “profunda dúvida” quanto ao seu futuro. Agora já não: Kamasi Washington não será apenas grande, será épico. 

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