O lugar da cultura no século XXI

O lugar da cultura passa pela recuperação de valores éticos, estéticos e da própria pessoa humana, incluindo a questão da repartição das riquezas.

É conhecido o aforismo do escritor, ensaísta e pensador francês André Malraux (1901-1976): “O século XXI será um século espiritual. Ou não será”. Este homem, maqui na Resistência, foi o responsável pela pasta da Cultura do 1.º Governo de De Gaulle nos anos imediatamente a seguir à 2.ª Guerra Mundial. As reformas que empreendeu e a estruturação da própria cultura em França, tornaram-se um modelo seguido de muito próximo por vários países da Europa não-totalitária, incluindo as novas Alemanha e Itália.

Porque Malraux – e consequentemente De Gaulle – entenderam a importância estratégica do lugar da cultura para a recuperação moral, identitária e do esforço de guerra. Aliás, também Churchill, confrontado com as necessidades de cortes orçamentais e prioridades após a devastação da mesma guerra e a possibilidade do sector da cultura estar entre eles, respondeu que não, contraperguntando “para que teria então servido o esforço de guerra” (contra os nazis). Nazis esses que, por sua vez, através do ideólogo e ministro da propaganda do III Reich, haviam confinado o lugar da cultura à célebre frase “quando oiço falar de cultura, rapo do meu revólver”.

Ora, Malraux, quando afirma a necessidade da espiritualidade no século XXI para que a civilização (quiçá a espécie humana) subsista, foi – como em muitas outras ocasiões – um visionário filosófico e político, mas de âmbito racionalista. Essa espiritualidade não é, pelo menos principalmente, a de natureza contemplativa e/ou mística. Aquela a que Malraux se refere é a do humanismo e da importância de factores intangíveis e não-quantificáveis materialmente, como a religião também, mas não menos a cultura e as artes em geral, a ética, o reconhecimento civilizacional europeu. Este, de herança greco-latina, e de matriz cristã, por oposição à barbárie pagã do nazismo. O que é tanto mais interessante quanto a Igreja Católica, desde o Concílio Vaticano II, tem procurado – com avanços e recuos – fazer a aproximação de sentido convergente para a ética da espiritualidade tocar o tangível desse mesmo humanismo no que respeita às condições de vida do trabalhador como pessoa humana num todo e não como mero aparelho reprodutor e gerador de riqueza material. No que, com Francisco, vai ainda mais além, ao proclamar a luta contra a ganância do lucro, os enormes abismos na repartição da riqueza e a importância de combater a exclusão social de massas imensas de gentes.   

Estes dois rios correm para o mesmo mar, da esperança e da justiça, a partir da fusão entre um personalismo cristão e uma visão laica que o Estado social procurou minimamente cumprir, ao garantir o acesso dos mesmos valores básicos da pessoa humana/cidadão: a saúde, a educação, a protecção da infância e da velhice e a cultura, a par com a ciência. Factores agregadoras da comunidade e de uma ética de responsabilidade social. Ou seja, configurando em si mesmo uma noção de cultura, num sentido vasto e inclusivo de vários sistemas de crença e formulações ideológicas e mesmo propostas políticas de sistema económico diferenciado.

Esta frente resulta exactamente da perspectiva contra a bestialidade do inimigo e espalha-se pela Europa, salvo os extremos geográficos e ideológicos dos dois totalitarismos. Este(s) modelo(s) inclui(em) a livre iniciativa em todas as suas componentes, mas não se demite da função reguladora do Estado e chamando a si a responsabilidade e indispensibilidade  da sua presença, directa ou indirecta, no estímulo e sustentação, no todo ou em parte, dos sectores acima mencionados e outros, incluindo, naturalmente, de forma completa, a defesa nacional e os aparelhos judiciais e jurídicos. Trata-se de um facto entendido como factor de desenvolvimento civilizacional e respeito absoluto da diversidade estética e opções ideológicas e demais sistemas de crença, baptizado como Estado social.

Porém, o fenómeno da chamada globalização, na sua configuração presente dominante, tem levado, e mais levará, à destruição desse Estado, primeiro, e de todo e qualquer Estado fora da função repressiva. Neste contexto o lugar da cultura passa pelo e no combate a este estado de coisas, mormente a recuperação de valores éticos, estéticos e da própria pessoa humana, incluindo a questão da repartição das riquezas. É este aspecto, cuja radicalização de fosso entre os ricos cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, provoca e explica a indignação prioritária de Francisco e de sectores laicos e mesmo ateus, das mais diversas famílias políticas, a par de fenómenos emergentes de recusa e oposição à Nova Ordem Mundial em crescimento. Recusa feita quer em modelos construtivos e reconstrutivos, quer em outros destrutivos, que já começaram a configurar-se.

É isto, pela via do Conhecimento e da Sensibilidade, o lugar da Cultura no século XXI. Também como Malraux o sintetizo: “A Cultura, sob todas as formas de Arte, de Amor e de Pensamento, através dos séculos, capacitou o Homem a ser menos escravizado”. O lugar da cultura, nesta sua dupla função da defesa do património humanista e civilizacional, é unívoco na sua diversidade estética e de pensamento. Mas não pode estar no espaço do falso diálogo em parties ou partes (gagas) com a gestão do lúmpen-burguesia, a quem – semelhantemente ao que Hitler fizera com as SA ou Átila com as hordas de cavalaria – o capital financeiro ultra-especulativo mundial contemporâneo entregou esse outro lugar de culto de tropas de assalto para a destruição da dignidade da pessoa humana e da própria civilização.

Encenador e director artístico de Dogma\12

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