O Livro do Apocalipse

Um assombroso exercício em que a linguagem mais brutal se alia ao lirismo mais iluminado: este livro será um marco na literatura portuguesa.

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Ana Margarida Carvalho escreveu uma obra ímpar na sua universalidade, no seu fulgor linguístico, na incomparável força das imagens DANIEL ROCHA

São poucos os romances que conseguem arrebatar o leitor, logo na primeira página, arrastando-o para uma aventura dramática e alucinante, sem descanso nem refrigério. É o caso da mais recente obra de Ana Margarida de Carvalho que retira o seu título do Poema do Desamor, de Alexandre O’Neill (“Queixa-te coxa-te desnalga-te desalma-te/ Não se pode morar nos olhos de um gato/ Beija embainha grunhe geme/ Não se pode morar nos olhos de um gato”). É compreensível que seja O’Neill a funcionar como pedra de toque desta narrativa em que o virtuosismo da linguagem, o ritmo das palavras, a agilidade do discurso e as imagens surrealizantes se sucedem em catadupa, numa torrente imparável e avassaladora.

Tudo começa no troar das vagas impiedosas de um oceano bravio, num tumulto de tempestade, entre preces aflitas, brados e imprecações, pedidos insistentes, blasfémias e rogos, gritos e choros. Um naufrágio é coisa tormentosa, apodera-se de vidas, almas, coisas. Tudo é sugado na voragem do mar revolto. Tudo, menos uma santa de madeira, uma fidalga e a filha, um capataz, um escravo, um criado, um padre, um estudante e um menino preto, sobreviventes do navio negreiro, perdidos numa praia inóspita. “Os mortos ao menos não sonham, são sonhados”, escreve Ana Margarida de Carvalho, enquanto os corpos que habitavam o navio que agora se desfaz, pela “imperícia do piloto, no pouco tento, pouco resguardo, calafetagem feita à pressa, poupada nas bolsas dos contratadores”, se afundam, no túmulo líquido, entre espuma, algas, detritos.

Sob um céu impiedoso, num pedaço de areia que desaparece na maré alta, enclausurados por penhascos a pique sobre o mar, apenas com uma plataforma para se refugiarem, uma caverna e uma poça de água doce, os náufragos, tão diferentes entre si, com histórias privadas tão distintas, são confrontados uns com os outros, consigo próprios e com a natureza inclemente que lhes fornece o mínimo para sobreviverem e o máximo para perecerem.

Cada personagem, arrastada pelo seu destino funesto, presa das suas memórias e condicionada por uma situação desesperada, numa autêntica prisão de rocha, areia e mar, vai-se transformando numa dinâmica de extrema brutalidade, que nunca anda longe da loucura. É um universo fechado, concentracionário, sem leis, em que se agitam as pulsões mais desenfreadas, onde todos se vigiam e se debatem.

Tal como Dante ao percorrer os nove anéis do Inferno — poucos tormentos se assemelham aos descritos na Divina Comédia —, também os habitantes deste lugar de clausura e sacrifício, deste “purgatório” sem fim à vista, experimentam a violência física e psicológica, a cupidez, a licenciosidade mais abjecta, a ira e a heresia, os logros e as manipulações. 

Misto de alegoria medieval, fantasmagoria apocalíptica, memória da História Trágico-Marítima, exercício estilístico e dramática análise ontológica, Não se Pode Morar nos Olhos de um Gato é um vigoroso e assombroso exercício, em que a linguagem mais brutal se alia ao lirismo mais iluminado, formando uma parábola sobre a resiliência do ser humano e a sua adaptação às condições mais adversas. Não se Pode Morar nos Olhos de um Gato, um livro sobre a impossibilidade, a derrocada da humanidade e a dificuldade em conciliar o inconciliável, será seguramente, e sem receio de errar, um dos livros mais extraordinários do ano e um marco na literatura portuguesa. Quem o lê não esquecerá; quem o não ler perderá uma obra ímpar na sua universalidade, no seu fulgor linguístico, na incomparável força das imagens e na sua intrínseca contemporaneidade no que diz respeito às questões essenciais: como sobreviver em situações limite?, como conviver com o “outro”, o “diferente”?, como resistir à tirania?, como vencer o desespero?, haverá salvação possível? A esta última questão, Ana Margarida de Carvalho responde que sim, ou, mais acertadamente, talvez. Ninguém escapa ileso do inferno, mesmo que se cumpra um derradeiro rito sacrificial.

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