O lado B da História rock

Greil Marcus viaja numa máquina do tempo avariada, saltando de época para época ao sabor de dez canções pouco óbvias

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Greil Marcus conta a História do rock com uma escrita subjectiva, maravilhadamente especulativa

No primeiro capítulo de The History of Rock’n’Roll in Ten Songs, Greil Marcus enumera exaustivamente os nomes constantes do Rock and Roll Hall of Fame — Chuck Berry, James Brown, Ray Charles, Sam Cooke e um imenso etc. —, aflorando brevemente a narrativa oficial (cristalizada, museológica) da História do rock, a qual não voltará a tocar nas restantes páginas do livro.

Quem conhece a obra do crítico e ensaísta norte-americano não se espantará. Sempre lhe interessaram mais outras histórias, as obscuras, as lendas, o mito, as associações estranhíssimas entre acontecimentos e conceitos aparentemente distantes, a ficção pura e dura. Em Lipstick Traces (editado em Portugal pela Frenesi como Marcas de Baton), chegava ao punk através de uma seita herética do século XVI, do dadaísmo e do movimento letrista (precursor do situacionismo). Uma História secreta do século XX (era o subtítulo desse livro) que provavelmente só existirá na sua cabeça. Da mesma forma, esta História do rock, não sendo propriamente secreta, é extremamente pessoal, a começar na escolha das canções que a compõem.

Os pouco conhecidos Flamin’ Groovies dificilmente serão mais do que uma nota de rodapé (se tanto) em qualquer outra história da música. No entanto, abrem The History of Rock’n’Roll (estruturado como um álbum, até tem um interlúdio instrumental) com Shake some action, que Marcus considera demonstrativa da capacidade de o rock ser inventado a qualquer momento, em qualquer lugar. Inventado e não reinventado, ressalve-se. Para o autor, a ordem cronológica das coisas merece tanta estima como a rigidez das histórias oficiais. O presente e o passado (e, presume-se, o futuro) como que existem ao mesmo tempo, o punk desagua na folk e o rock resulta na country e nos blues. A voz de Amy Winehouse pode influenciar a escrita de To know him is to love him por Phil Spector 40 anos antes. As datas que acompanham cada capítulo-canção (a assinalar versões, reinterpretações, interpretações diferentes) tanto andam para a frente como para trás; o livro é como uma máquina do tempo avariada, saltando de época para época sem outra razão que não a vontade de Greil Marcus, uma espécie de vidente que só adivinha o que já aconteceu. No entanto, se sabe tanto como nós, vê mais além, sobretudo por não se deixar restringir pelos factos.

Quando se atira a Transmission, dos Joy Division, opta não por descrever as imagens da primeira prestação da banda no programa de Tony Wilson (onde, aliás, tocaramShadowplay) mas a versão cinematográfica desse mesmo evento em Control, de Anton Corbijn. Ou seja, algo que realmente não aconteceu ou, pelo menos, não aconteceu assim e, portanto, só existe na ficção. Vai mais longe: pega no actor Sam Riley, para sempre contaminado por Ian Curtis, e encontra na sua filmografia Crime e Pecado, de Rowan Joffe, a mais recente adaptação do Brighton Rock de Graham Greene. No filme, passado nos anos 60, Riley interpreta Pinkie, um criminoso que tem de casar com uma rapariga para esta não o denunciar à polícia. A dada altura, ela pede-lhe que lhe grave um disco (numa daquelas cabines da época). Ela assente mas, em vez de dizer que a ama, enuncia todos os seus defeitos, acabando por afirmar que a detesta. “It comes off the screen as the first punk single”, escreve Marcus, já incapaz de distinguir a realidade da ficção, para deleite do leitor. Noutro capítulo, formula uma biografia imaginária de Robert Johnson caso aquele não tivesse morrido a 16 de agosto de 1938 (a mesma data da morte de Elvis, daí a 39 anos) em que este encontra Easy Rawlins (detective privado criado por Walter Mosley e interpretado por Denzel Washington em Um Demónio Vestido de Azul) e produz um álbum dos N.W.A.

The History of Rock’n’Roll

 reúne alguns textos antigos de Marcus para revistas e edições de DVD (o documentário de Martin Scorsese sobre Robert Johnson, por exemplo) e outros escritos propositadamente para esta edição, apanhando às vezes ideias de artigos já existentes. O tema de um dos mais interessantes é 

Guitar drag

, um disco que o autor comprou meio ao acaso e só veio a saber mais tarde tratar-se da “banda sonora” para um vídeo do artista visual Christian Marclay. Em 

Guitar drag

, Marclay substituiu o corpo de James Byrd, um negro linchado por dois supremacistas brancos no fim dos anos 90, por uma guitarra presa a uma carrinha e arrastada pela ruas do Texas onde o homem morrera. A música é o barulho da guitarra a arranhar o alcatrão, o 

unsinging

 das baladas ao herói John Henry, de todos os direitos conquistados pelos afro-americanos, ou como o presente pode desfazer o passado e o futuro.

Para um autor tão dado a escrever e a reescrever narrativas, é curioso que Greil Marcus ligue tão pouco às letras das canções, preferindo imaginar o que está por trás de uma linha de baixo, de uma inflexão da voz, de um tique na cara da cantora. É uma escrita parcial, absolutamente subjectiva, maravilhadamente especulativa, indiferente a qualquer preocupação jornalística/académica e, ainda assim, cria uma História mais verdadeira do que a de qualquer museu de cera oficial.

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