O Kilimanjaro visto de cima

Rodrigo Francisco assina uma encenação e uma dramaturgia dignas de nota, em que os atores levantam voo, levando consigo o público

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Kilimanjaro tem encenação de Rodrigo Francisco DR

Se Harry, a personagem de As Neves de Kilimanjaro, era um alter ego de Hemingway, serão as personagens desta peça alter egos dos actores? Dir-se-ia que sim, tal a propriedade com que assumem as falas escritas e reescritas por Rodrigo Francisco para as suas bocas e corpos.

Esse é um dos feitos deste espectáculo: um elenco que no todo vale mais do que a soma das partes. Atenção que os actores, contados um a um, não vão nada mal, antes pelo contrário: Ana Cris, Duarte Guimarães, Elias Nazaré, João Farraia, João Tempera, Luís Vicente, Pedro Lima, Pedro Walter, Rita Loureiro (José Evaristo tem uma participação especial) actuam com convicção e graça, cada um deles apropriando-se das ideias e emoções das personagens à sua maneira, ou aliás, melhor dizendo, recriando as ideias e emoções das personagens a partir das palavras do texto. Essas mesmas palavras são o outro trunfo da peça: os diálogos agarram, as expressões caracterizam, o português corre agilmente, a prosa reconhece-se mas surpreende também.

Há um certo sabor a Joel Pommerat na economia das cenas, seja na maneira como foram desenhadas para desenrolar aos poucos cada personagem, seja na alternância entre escuros e acção, seja ainda no modo como começam e acabam abruptamente, como vinhetas. Isto é um mérito. A circulação da camilha onde Harry padece, os avanços e recuos no tempo, as viagens pelos vários países do mundo ficcional de Hemingway, e o modo como luz, música, cenário e figurinos concorrem para materializar essas histórias são outros tantos méritos da encenação.

O espectáculo não tem propriamente um pico dramático. No momento mais tenso da actuação de João Tempera, quando se confronta com os horrores da guerra, a sua loucura temporária desvia a tensão dramática e alivia, indirectamente, a situação de confronto. Os momentos de insinuação sexual entre Rita Loureiro e Pedro Lima também poderiam ser menos pudicos.

A contenção serve uma poética própria, apurada pela encenação para oferecer uma vista panorâmica, sobre o caminho que vai da juventude ao abandono da vida, em que o destino parece ser obra do acaso, mais do que estar nas mãos de cada um.

Este espectáculo presta-se a ser metáfora de várias coisas. Cada pessoa que o vir escolherá as suas metáforas preferidas. Pode-se pensar que esta peça é sobre Hemingway, sobre a Europa e África, sobre o séc. XX. Mas é sobretudo, através desses filtros, acerca de um certo país, uma certa maneira de estar, uma certa maneira de pôr as coisas, muito familiar, reproduzida aqui com fantasia e fidelidade, e não apenas pelo texto, mas pela maneira como os actores ocupam a cena.

Rodrigo Francisco assina uma encenação e uma dramaturgia dignas de nota, por várias razões, mas sobretudo por ser escrita e encenada para os actores levantarem voo, um por um e no conjunto, e assim devolverem aos espectadores o adormecido condão de voar.

 

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