O jazz como lição de concórdia europeia

Chegado à sua 10.ª edição, o Jazz im Goethe Garten oferece às tardes lisboetas, entre 1 e 17 de Julho, 11 variações europeias da linguagem jazzística.

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Motion Trio & Rodrigo Pinheiro dr
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Konstrukt dr
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Baloni Peter Gannushkin

Nem tudo é desagregação europeia. Nem tudo é uma Europa que não sabe o que há-de fazer às suas diferenças. Nem tudo são quotas de cultivo ou de pesca, nem tudo são tratados que impõem regras comuns e clivagens Norte-Sul. Há um jardim em Lisboa povoado por músicos de toda a Europa que resiste agora e sempre a qualquer tentativa de normalização do que significa ser europeu. No jardim do alemão Goethe Institut, no Campo Mártires da Pátria, em Lisboa, o estival Jazz im Goethe Garten cumpre em 2014, entre 1 e 17 de Julho e sempre ao final da tarde, a décima edição dedicada a uma música que celebra a diversidade europeia sem lhe exigir um entendimento rigoroso e estrito das fronteiras.

“Está presente no Jazz im Goethe Garten uma noção de talento emergente”, afirma Rui Neves, director artístico do festival, “mas o que mais interessa nesta configuração – desde sempre e este ano ampliada numa selecção de 11 concertos – é justamente a diversificação estética defendida por cada um destes grupos. Assim como a quantidade de países de onde os músicos são provenientes”, acrescenta. Portugal e Alemanha (representados pelo Motion Trio de Rodrigo Amado e o Underkarl de Rudi Mahall, duas das grandes figuras do festival), claro, mas também Áustria, Itália, Finlândia, Luxemburgo, Noruega, Suíça, Bélgica e Turquia, diversidade facilitada pelas relações institucionais do instituto cultural com as representações diplomáticas destes países em Portugal. A escolha de uma formação turca, o quarteto Konstrukt, relaciona-se precisamente com uma reflexão sobre a identidade europeia, após uma investigação cuidada de Rui Neves à cena underground de Istambul. “Free jazz à la turca” é como o director artístico descreve a sonoridade dos Konstrukt, com actuação marcada para 10 de Julho, num enlace constante entre sonoridades com marcas registadas tanto no Ocidente jazzístico quanto na música tradicional do Próximo Oriente.

As testemunhas abonatórias desta sopa de linguagens foram já gigantes do jazz mundial como os saxofonistas Marshall Allen (actual líder da Sun Ra Arkestra), Evan Parker e Peter Brötzmann, tendo actuado recentemente ao lado do quarteto turco em vários festivais europeus. O Velho Continente, de resto, tem uma longa tradição hospitaleira para com músicos e músicas que desafiem os cânones e tomem o exercício criativo como palco de experiências, permeabilidade a diferentes culturas e abertura ao menos convencional. Rui Neves faz questão de lembrar que, no pico da vanguarda do free jazz em terras norte-americanas, foi na Europa que músicos como Anthony Braxton, Art Ensemble of Chicago, Archie Shepp, Sunny Murray ou Don Cherry encontraram reconhecimento pelas suas propostas ousadas e de ruptura com a tradição do jazz, muitas vezes cruzando a sua linguagem de origem popular com os caminhos da música escrita desenvolvida na Europa. “A Europa parece ter uma capacidade muito especial – e claro que isso vem da sua História, do seu conhecimento e da prática da música por grandes génios – e uma elevada percepção para reconhecer estes tipos de novas músicas”, considera Neves.

Desde então, desde que o jazz se reclamou free ou antes quando se fez bebop, que se sucedem, tal como no rock, as repetidas certidões de óbito extemporâneas, sempre que cada movimento questiona a geração anterior e é tomado por herege. “E tal como no rock”, diz ainda Rui Neves, “ninguém defende de forma peremptória que depois do Elvis Presley não há mais rock.” Foi, de resto, nessas décadas de 50 e 60, de emergência do free, que o jazz começou a ganhar mais adeptos na Europa. Por isso mesmo, o Jazz im Goethe Garten propõe-se igualmente apresentar um jazz que se faz no continente num progressivo movimento de autonomia relativamente à escola desenvolvida nos Estados Unidos. A programação privilegia, assim, aqueles que se distanciam das convenções e procuram uma linguagem muitas vezes nascida de intersecções específicas com músicas locais.

O programa

Muito longe de quaisquer convenções estão, desde logo, os dois projectos (português e austríaco) que servem de arranque ao festival deste ano. Simbolicamente, Portugal e Alemanha asseguram a abertura e o encerramento, cabendo ao Rodrigo Amado Motion Trio, terça-feira, pelas 19h00, a primeira apresentação – que será igualmente uma estreia de Amado (saxofone), Gabriel Ferrandini (bateria) e Miguel Mira (violoncelo) na companhia do convidado Rodrigo Pinheiro (do RED Trio, no piano). O Motion Trio de Rodrigo Amado, recorde-se, acaba de lançar dois notáveis discos em que convida uma das “vozes” mais singulares do jazz contemporâneo, o trompetista norte-americano Peter Evans, a destabilizar a sua música. No dia seguinte, à mesma hora, seguir-se-á o trio austríaco Weisse W?nde, em que a música saída da bateria de Herbert Pirker e a guitarra eléctrica de Karl Ritter contamina e é contaminada pela poesia declamada por Christian Reiner.

A variedade das escolhas passa depois pelo concerto de piano solo do italiano Umberto Petrin, membro da Italian Instable Orchestra (dia 3) e pelas formações de dois músicos em claro movimento de ascensão internacional dada a notória ligeireza com que chegaram à primeira linha das cenas jazzísticas dos seus países: o saxofonista finlandês Mikko Innanen, que actua no dia 8 acompanhado da banda Innkvisitio (onde encontramos o prestigiado Fredrik Ljungkvist, dos Atomic), e o também saxofonista francês Émile Parisien, a 16 de Julho. Além dos luxemburgueses 4s (dia 9), dos noruegueses Cortex (10, depois da actuação dos Konstrukt) e dos suíços Silo (14), outro dos grupos de forte qualidade simbólica deste Jazz im Goethe Garten é o trio Baloni (dia 15), formado por um belga, um francês e um alemão que se conheceram em Nova Iorque, em 2008, e reflectem, segundo Rui Neves, os movimentos migratórios dos músicos de hoje, livres de procurar os locais mais adequados à formação que procuram e à música que pretendem fazer. A fechar, a 17 de Julho, os alemães Underkarl, dirigidos por Sebastian Gramss e contando com o prestigiado clarinetista Rudi Mahall numa efervescente sonoridade que junta free jazz, rock, minimalismo e tudo o mais que vier à rede.

Sem carimbos de mainstream, cada uma das formações programadas para o festival foi identificada como exemplar na fuga às meras reproduções de música alheia e no desenvolvimento de identidades próprias, ampliando os limites da linguagem jazzística. Acreditando no poder transformador da música, Rui Neves afirma-se igualmente um convicto europeísta, lamentando a falta de concórdia em torno de um projecto europeu. “Talvez a música de jazz seja uma boa lição de concórdia”, propõe. E, logo em seguida, corrige: “Não é talvez. É mesmo.”

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