O Inferno do nosso descontentamento

Polémica: Luís Rainha responde à crónica de António Guerreiro, Os Filisteus Cultivados.

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Um terço dos utilizadores da Internet não passa um dia sem ir ao Facebook JOEL SAGET/AFP

Imagine-se o Crítico no seu altar. Refastelado no topo da cadeia alimentar, aplaudido por legiões de fãs que suspiram a cada semanal sentença. Ninguém ousa contradizer-lhe os Diktate, com medo de se ver votado à indiferença ou, cruzes!, ao Hades das recensões negativas.

Agora imagine-se este aristocrata da sabedoria mirando as vidas trepidantes das formigas humanas lá em baixo. Num raro momento de fraqueza, o titã literato sente saudade da agitação, dos miúdos conflitos em que os Ungeziefers se gastam.

Deixa-se tentar e desce à Terra, tugúrio pejado de corpos, multidões e outros incómodos suados. Mas o ennui não esmorece: por todo o lado as turbas se ajoelham ante o Crítico. Às tantas, os seus olhos famintos de desafios lobrigam a entrada de um subterrâneo; oscura, a prometer perigos mil. Quando inquire o que vem a ser aquilo, o enigma aviva-se:

— É o Facebook, Doutor. Nada em que queira fixar morada ou atascar o seu alvo pé. Arrastam-se por lá maldizentes, impropérios, filistinismos sem fim — tartamudeia a criatura então abordada.

— Muito ditoso me farás se por lá te aventurares e depois deres fiel relato do que nessas fétidas paragens de mim se diz — proclama o Crítico, antes de mais uma pitada de rapé.

Minutos depois, que as artimanhas demoníacas do reino digital ocorrem à velocidade da luz, o batedor está de volta:

— Mestre — arqueja, ainda a lutar contra os bofes tabágicos e o peso do respeito. — Para meu escândalo, há por ali quem não lhe conceda as devidas mesuras. Até ousam questioná-lo!

— Não tremas mais, útil amigo. — A cauda do informador abana. — Conta-me tudo...

Epopeia similar levou António Guerreiro a tecer uma crónica inteira para me expor como “filisteu cultivado”; um desses espíritos amantes de baias que julgam que “tudo o que não respeite as fronteiras onde eles são guardas não tem sentido”. Um tosco a quem não “passa pela cabeça que [ele] use o Inferno de Dante para falar da dívida grega”. O meu pecado? Ter lido a passagem “recordemos que, para a teologia cristã, existe uma única instituição legal que não conhece interrupção nem fim: o inferno” e depois desabafado, no Facebook: “Alguém me explique, por favor, onde se encontra um só grama de sentido nesta frase”. Atenção; não perguntei “mas porque fala ele de teologia ou de Dante, a propósito da dívida grega?” (Aliás, ele não mencionou a Divina Comédia para falar da Grécia, mas agora parece acreditar que sim. Nós, filisteus, é que nada percebemos.)

Acabou plangendo que eu serei um dos “carnífices de serviço no tribunal popular” — magno efeito de um microcomentário que angariou quatro pobres likes; dois dos quais, por virem de gente “do meio”, foram logo elencados e metidos no saco da tralha filistina.

Mas, não obstante o rasgar de vestes, ele continua sem um grama de razão. Muitos protestantes crêem na imortalidade condicionada, sem tormentos eternos. A Igreja Ortodoxa foi influenciada por Orígenes e pela doutrina da restauração universal, a apokatastasis. Fracturada está a “teologia cristã”. Depois, é duvidoso que o Inferno seja uma instituição — um sistema estável de regras que estruturam interacções sociais. E por que diabos “instituição legal”? Os manuais de Direito explicam o conceito, que não adianta muito a esta missa. Foucault separou o sistema legal, com os seus códigos normativos, dos mecanismos disciplinares e dos dispositivos de segurança; o Inferno seria por certo peça da segunda destas modalidades das relações de poder.

Pretendia a expressão desfocada abarcar tudo o que advém da Lei suprema que é a vontade de Deus? Engano: mesmo se o Inferno fosse uma “instituição legal” não seria a única fadada à eternidade — o Céu também o é.

Nem S. Tomás nem S. Giorgio lhe acodem; mais valia confessar que, uma vez na vida, se baralhou. E deixar-se disso dos autos-de-fé. 

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