O inferno branco

Um romance épico que nos remete sempre para a memória lírica do mito — e para um tempo dominado por uma avassaladora solidão

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A obstinação, recorrente nas histórias míticas dos heróis das sagas islandesas, marca as personagens de Jón Kalman Stefánsson
A Tristeza dos Anjos

é o segundo volume de uma trilogia do escritor islandês Jón Kalman Stefánsson (n. 1963) que se iniciou com

Paraíso e Inferno

(Cavalo de Ferro, 2013). Ambos os romances têm lugar numa aldeia remota da costa islandesa, em finais do século XIX, abordando uma pequena comunidade piscatória na orla de uma baía que, dizem, é “tão larga que a vida não a consegue atravessar”. A procura de sentido para a ideia da existência de um Deus bom e todo-poderoso que permite o sofrimento dos homens, quando lhe seria tão fácil evitá-lo, parece ser a agulha da bússola que guia o autor na escrita desta trilogia. Mais do que histórias em que os gritos dos mortos se misturam com os dos vivos, compondo um coro trágico que não cessa de evocar a inevitável desolação da existência e a irremediável solidão dos homens, a trilogia é sobretudo um hino ao poder redentor das palavras e também da amizade, pois “o Inferno é ter braços mas ninguém a quem abraçar”.

Em A Tristeza dos Anjos é retomada a história narrada no volume anterior — mas os romances podem ser lidos separadamente, ou mesmo pela ordem inversa — e são introduzidas novas personagens. Jens, o carteiro, é uma delas. Ele “é o fio que os une ao mundo exterior durante os longos meses de Inverno, quando as estrelas são a única companhia, bem como a escuridão entre elas e a Lua branca”. Vai três ou quatro vezes por ano buscar o correio à capital, Reiquiavique. Chega montado a cavalo, exausto e quase a desfalecer, à casa onde vivem o rapaz (nunca nomeado) do livro anterior (“o rapaz que sobrevivera ao homem que morrera”) e também Helga e o velho comandante Kolbeinn. São eles que o socorrem, que o ajudam a desmontar do cavalo, ao qual estava colado pelo gelo que se formara três horas antes, ao atravessar um rio. Dão-lhe abrigo durante algum tempo até ele estar em condições para seguir para os fiordes mais a Norte, “onde a Islândia acaba e deixa lugar ao Inverno eterno”. O rapaz acompanhá-lo-á nessa perigosa e longa viagem pelas desoladas paisagens de gelo para o ajudar na travessia de um braço de mar. Para Jens, essa viagem será uma espécie de expiação de um amor secreto; para o rapaz, será uma viagem de descoberta do poder da palavra e de como conciliar a poesia com o trabalho. “A luta pela vida e pelos sonhos não se consegue conciliar, a poesia e o peixe salgado são irreconciliáveis, e ninguém come os seus próprios sonhos.”

Este segundo livro da trilogia, com as suas digressões e considerações sobre a poesia, o poder salvífico da palavra, a tristeza e a privação, a vida e a morte acompanhando as descobertas do rapaz, pode ser entendido como uma espécie de “romance de formação”, mas que ao mesmo tempo se mistura com um “livro de viagem” através de uma natureza hostil, de enormes paisagens desoladas, austeras e terrivelmente frias, que os homens enfrentam rudemente até à exaustão. O frio, a escuridão, as tempestades, o vento e o Árctico parecem acompanhar todos os pensamentos das personagens, como se, ao lado dos peixes e dos companheiros afogados que lhes habitam os sonhos com as suas vozes fantasmagóricas e lhes acenam na madrugada com barbatanas em vez de mãos, houvesse sempre lugar para um contrapeso que os prendesse à cruel realidade.

A obstinação das personagens parece algo que ficou das histórias míticas dos heróis das sagas islandesas. A tenacidade na sobrevivência marca todo o livro. “É certamente sempre sedutor desistir e, na verdade, muitos fazem-no, deixam que a neve da vida quotidiana os tape até ficarem presos e, sem mais aventuras, param simplesmente e deixam que a neve lhes caia em cima.”

A Tristeza dos Anjos

é um romance épico que retrata de maneira magistral aquela singular atmosfera de elementos naturais ferozes e opressivos, de uma Natureza não subjugada pelo Homem (de fogo e de vento, de gelo e de rios indomáveis) tão característica da Islândia. E que nos remetendo sempre para a memória lírica do mito, para um tempo dominado por uma sombria e avassaladora solidão.

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